Alfredo Sampaio Costa SJ
Nas próximas reflexões, queremos trazer algumas propostas de como rezar o tempo forte da Páscoa, a partir dos ensinamentos de Santo Inácio nos Exercícios Espirituais e à luz da reflexão teológica.
Um lembrete importante: a unidade do Mistério Pascal: um só Mistério!
Certamente após todo um longo tempo dedicado à penitência, à revisão da nossa vida durante a Quaresma, damos um suspiro de alívio quando chega a Páscoa! O clima de “enterro” se desfaz e dá lugar a um relaxamento e uma distensão, acompanhados da sensação de “dever cumprido”. É natural que assim aconteça. Contudo, não basta esse desafogo sentimental.
Se cada Mistério da Vida de Nosso Senhor ilumina nossa vida como indivíduos e como Igreja, temos que enfrentar a pergunta: e os Mistérios da Ressurreição, que luz projetam sobre nós? É suficiente experimentar um alívio interno? Ora, a alegria da Ressurreição precisa ainda nos mover ao serviço[1]. Como já apontava Michael Evans, a alegria da Ressurreição se constituirá em um elã e coragem para participar no trabalho pelo Reino[2]. Ela deverá engajar a pessoa por inteiro e deverá ter um impacto na experiência de cada dia.
Cada etapa da Vida de Cristo, a seu modo, deverá impactar nossa vida. É desentender totalmente o que Inácio queria com seus Exercícios, viver uma etapa “desconectada” da outra, como se virássemos as páginas de um livro para avançar na leitura, com a nossa atenção voltada para “que fim terá isso”, sem nenhuma vontade de “repercorrer” as páginas que ficaram para trás.
Como entender (e rezar) a Ressurreição do Senhor, a não ser à contraluz da sua Paixão e Morte? O nosso querido Padre Libânio[3] já nos alertava que sem esse pano de fundo contrastante, correr-se-ia o risco de viver um Tempo pascal que venha apagar a dureza do seguimento de Jesus na Cruz, como um “Final Feliz” de filme americano de décadas passadas.
Como garantir uma transição tranquila e serena entre a Quaresma/Paixão e a Ressurreição / Tempo Pascal
A experiência celebrada da Semana Santa nas paróquias nos coloca diante de uma dificuldade: como podemos afetivamente passar da Paixão à Ressurreição?
Nas várias modalidades de Exercícios inacianos, temos que enfrentar a mesma questão. Nos Exercícios “breves” de 8 dias, é bastante problemática a questão dessa transição. Soa muito artificial e abrupta a mudança radical da “dor com Cristo doloroso” para “gozo com Cristo gozoso”, principalmente a nível psicológico. Às vezes, no mesmo dia, somos chamados a contemplar Paixão, Morte e Ressurreição!
No Mês Inaciano essa passagem poderia ser trabalhada não somente se fazendo o necessário “intervalo” de meio-dia ou 1 dia inteiro para recuperar as energias físicas e psicológicas, mas concordo com o Pe. Quevedinho quando propõe preparar o exercitante para a Primeira contemplação da Quarta Semana (a “aparição a Nossa Senhora”) contemplando o mistério da solidão de Maria, no Sábado Santo[4]. Quando acompanho os 30 dias “corridos”, fazemos uma noite de vigília junto ao Sepulcro, junto com Nossa Senhora, que ajuda bastante a fazer a passagem da tristeza da morte à alegria da ressurreição.
Na vida corrente, tal passagem pode ser vivida com maior tranquilidade, mas sempre mantendo a unidade da vida de Cristo, morto e ressuscitado. Não é por acaso que os primeiros anúncios do Kerigma cristão sempre afirmavam a unidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. “Procurais a Jesus de Nazaré, o crucificado. Ele ressuscitou, não está aqui” (Mc 16,6; cf. At 2,23-24; 3,15; 4,10; 5,30; 10,40; 13,28-30).
Rezar a partir do Evangelho de João, onde a unidade do Mistério pascal se faz notar mais, pode ser também uma boa escolha.
Rezar a Ressurreição é iluminar todo o percurso já percorrido na Vida de Cristo e na nossa
Experimentar os efeitos da Vida Nova em Cristo é o cume de todo um processo de transformação interior e aprendizagem do seguimento a Jesus. É a etapa em que o exercitante, depois de ter passado pelo reconhecimento dos seus pecados e a gozosa experiência da misericórdia do Senhor, depois de ter seguido a Jesus em seus caminhos nessa terra e o acompanhado na sua Paixão, confronta-se agora com sua ressurreição[5].
Como nas Bodas de Caná, é no seu final que os Exercícios oferecem o melhor vinho. É conveniente que o exercitante que deseje provar deste vinho melhor mantenha até aqui o mesmo “grande ânimo e generosidade” com que iniciou o seu trajeto espiritual. Porque na lógica de Deus, tão distinta da humana, a experiência completa só alcança o seu auge com a presença “sentida e saboreada” do Ressuscitado. A progressiva intensidade espiritual dos Exercícios encontra aqui o seu tão esperado cume[6].
O Cardeal Martini propõe 3 pistas para melhor desfrutar da contemplação dos Mistérios gloriosos da vida de Cristo[7]:
- a) O primeiro elemento é contemplar como Jesus reconstitui gradualmente a comunidade dos seus, dispersos com o drama da paixão. Existe, nos relatos das aparições, um significado eclesial que não se pode negar. Acredito que essa perspectiva que irrompe com força na Ressurreição ajuda a não viver o seguimento de Cristo como caminho a ser trilhado solitariamente.
- b) Um segundo elemento que emerge destas contemplações é a ação imprevisível de Deus no mundo e os seus sinais, que aqui são sobretudo exteriores: Jesus que perdoa, renova, consola. O imprevisível de Deus, que ninguém esperava depois da catástrofe da cruz, se manifesta na capacidade renovadora e consoladora do Ressuscitado, o qual oferece aos seus o perdão, a reconciliação e a reabilitação.
- c) Um terceiro elemento, sobre o qual é possível refletir – vendo as coisas esta vez não da parte de Jesus para com os seus, mas da parte dos amigos – enquanto beneficiários das aparições – é a descoberta progressiva dos amigos de Jesus dos sinais pelos quais é possível perceber a presença de Jesus junto a eles. Afinal, o que buscamos no dia a dia não é exatamente sentir que Ele vive?
O que esperar da contemplação dos Mistérios Pascais[8]?
Afirmar a vitória da Vida é fundamental em um mundo marcado pela dor, sofrimento e morte, em um tempo onde a guerra e a violência avançam em território já devastado pela pandemia. Levar a termo a contemplação dos mistérios da vida de Cristo nos faz recordar que à pena seguirá a participação na glória (cf. a Meditação do Reino- EE 95). Como já fazíamos nos Mistérios dolorosos, aqui também o que almejamos é nos unirmos a Cristo.
A alegria experimentada ao rezar a Ressureição nos consola e nos faz sentir que a morte não tem a última palavra. Afirmar isso no mundo hoje é missão de todos nós.
A contemplação dos Mistérios pascais nos possibilitará colocar-nos numa dinâmica de discernimento contínuo, sempre em busca dos sinais de Vida que brilham em um campo de morte e violência, fazendo que não desanimemos de lutar pela vida em todas suas expressões.
Os mistérios da Páscoa também pretendem situar-nos na vida eclesial, que é o lugar onde somos chamados a seguir a Jesus Cristo. É nesta perspectiva comunitária, eclesial, que somos chamados a rezá-los. A ressurreição convocará a comunidade antes dispersa durante a paixão. O Pe. Quevedinho nos relembra que o amor à Igreja (EE 352-370) é um dos frutos dessa última etapa, associado ao entusiasmo apostólico, ao desejo de difundir e testemunhar pelo mundo afora a vida nova experimentada durante os Exercícios[9].
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Cf. Philip SANO, Ressurrection and Imagination, The Way Supplement 99 (2000) 143.
[2] Cf. Michael EVANS, Understanding the Spiritual Exercises, Gracewing, Herefordshire 1998, 162-163.
[3] Cf. João Batista LIBÂNIO, Ressurreição de Jesus, Itaici 64 (junho 2006) 8. Quem chama a atenção para esse fato é o Pe. Juan A. RUIZ DE GOPEGUI, no seu livro Procurar e encontrar Deus no dia-a-dia, por meio dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Loyola, SP 2003, 189.
[4] Luís GONZÁLEZ-QUEVEDO, Ele ressuscitou. Nós ressuscitaremos: uma introdução à Quarta Semana dos Exercícios. Itaici 64 (2006) 27.
[5] Maria Clara Lucchetti BINGEMER, La cuarta Semana: el don y el desafío de la alegría. Manresa 79 (2007) 139.
[6] Antonio GUILLÉN, El proceso espiritual de la Cuarta Semana, Manresa 79 (2007) 127.
[7] Carlo Maria MARTINI, “I misteri della risurrezione”, in AAVV., I misteri della vita di Cristo negli Esercizi Ignaziani, CIS, Roma 1980, 92.
[8] Seguimos aqui a exposição de Manuel TEJERA, “Cuarta semana”, in GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, 511-512.
[9] Luís GONZÁLEZ-QUEVEDO, Ele ressuscitou. Nós ressuscitaremos. Uma introdução à Quarta Semana dos Exercícios. Itaici 64 (2006) 26.