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Cegamento da inteligência e endurecimento do coração

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Geraldo De Mori SJ

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá? Eu, o Senhor, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos; e isso para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo o fruto de suas ações” (Jr 17,9-10).

Um dos termos para dizer o ser humano na Bíblia é “coração” (mais de 800 vezes). O significado anatômico, predominante na medicina moderna e contemporânea, é praticamente ausente nas Escrituras. Outras atividades lhe são, porém, atribuídas, algumas ligadas ao sentimento, outras à razão, outras à vontade. Ao primeiro, são associados angústia, alegria, dor, coragem, caráter, temperamento, ou ainda, ânimo, desejo, aspiração. À segunda, são conferidas funções cognoscitivas, como consciência, recordação, reflexão, juízo, orientação. À terceira, funções volitivas, como vontade, discernimento, decisão. O bem e o mal, amar ou não a Deus, acolher ou rejeitar alguém, em geral, são atribuídos ao coração. Não por acaso, um dos termos que definem Deus no conjunto das Escrituras, “misericórdia”, remete a coração, pois trata-se de voltar-se para o “miserável”, em todos os sentidos, com o coração, tomado como sede do sentimento, do conhecimento e da vontade. Essa amplitude de significados de coração fez com que muitos autores recorressem a ele para falar da infidelidade e do pecado. Em geral, o termo “endurecimento”, como em Ezequiel, faz Deus dizer que vai tirar o “coração de pedra”, dar um “coração novo”, um “coração de carne” (Ez 36,26), e Jesus afirmar que “onde estiver o tesouro” do ser humano, “lá estará seu coração” (Mt 6,21).

Em sua volta da viagem a Malta, o Papa Francisco, na entrevista que deu aos jornalistas, fez uma declaração que repete, sob muitos pontos de vista, os múltiplos apelos dos profetas, sábios e salmos, no Antigo Testamento, de Jesus e dos Apóstolos, no Novo Testamento, a não “endurecerem o coração”. Segundo o Papa, “Nós não aprendemos, estamos apaixonados pelas guerras e pelo espírito de Caim”. Essa declaração interveio no final de uma semana marcada no Brasil por dois episódios reveladores de um cegamento da inteligência e de um endurecimento do coração:
1. A nota do Ministro da Defesa, por ocasião do 31 de março, buscando, segundo ele, esclarecer, com “isenção e honestidade de propósito”, a suposta salvação da democracia no país, realizada pelo regime militar que derrubou um governo eleito, em 1964, implantando um regime de exceção, que fechou o congresso nacional, suprimiu as eleições, prendeu, torturou e matou inúmeros militantes tidos como inimigos do país; 2. O deboche de Eduardo Bolsonaro, no domingo, 3 de abril, à matéria de Miriam Leitão sobre declarações do Presidente ameaçando as instituições democráticas, evocando a tortura pela qual ela passou, justamente durante o período da ditadura militar no país.

De fato, desde que o Brasil entrou numa espécie de sono letárgico, proveniente, entre muitas razões, da aceitação da ideologia difusa da “pós-verdade”, que, utilizou-se das mídias digitais para espalhar falsas notícias, diabolizando opiniões e opções políticas de quem não pensa igual a si mesmo, ficou difícil o diálogo. A melhor forma de matar a política é impedir o diálogo. E para isso, é importante o tempo todo alimentar a polarização, espalhando declarações que, pelo nível de absurdidade, truculência e inverdade, seriam rechaçadas em qualquer país civilizado ou razoável do mundo, podendo, inclusive, ser perseguidas criminalmente. O pior, porém, é que com essas “distrações”, que só aumentam a polarização, o intolerável vai sendo implementado. E, sem dúvida alguma, para que isso aconteça, é importante erradicar a memória coletiva. Os dois episódios aludidos são duas expressões a mais da verdadeira lavagem cerebral provocada pelo entorpecimento no qual o país parece ter mergulhado. Nesse sentido, falando da tragédia da atual guerra na Ucrânia, o Papa evoca, desiludido, o fato de a humanidade, após tanta carnificina e horror, provocados pelas guerras dos últimos 200 anos, não ter aprendido dos crimes que cometeu. A afirmação, forte, é apelo à conversão.

O povo brasileiro gosta de dizer, com certo orgulho, que no país não há guerras, que os crimes de todo tipo cometidos em outros países não têm lugar no solo nacional. Esquece-se, porém, ou é levado a esquecer, que mesmo o direito das vítimas, de denunciarem seus algozes, foi e ainda é negado a quem sofre no cotidiano a guerra para sobreviver, para criar os filhos com dignidade e terem uma vida minimamente humana. As muitas violências da história nacional, dentre as quais, teria que causar vergonha e confusão as cometidas durante o regime militar, deveriam se tornar escola de reconciliação e de aprendizado para que, como escreveram os que escutaram as centenas de torturados e torturadas no país durante a ditadura, que realmente, “nunca mais” os crimes então cometidos voltassem a se repetir. Mas, quando se nega mesmo a existência de uma “ditadura militar”, quando se debocha da vítima, coisas muito piores poderão voltar a acontecer. Como diz o Papa “somos apaixonados pelo espírito de Caim”.

Que o mandatário da nação e seus sequazes se comprazam em alimentar continuamente declarações que deveriam provocar arrepio, horror e indignação em quem tem um mínimo de sentimento de humanidade, pode-se até compreender, pois, como num circo de horrores, estão querendo distrair os expectadores. O que não se compreende, porém, é o silêncio dessas mesmas multidões ludibriadas e cegadas pelo que há de mais abjeto na condição humana. Até quando isso poderá durar? Quando o que há de melhor no povo brasileiro começará a dizer: Basta, retornemos ao caminho que se faz caminhando juntos, na diferença, na escuta mútua, na acolhida do que cada um tem para aportar, sabendo que a união das diferenças é que faz a riqueza de um povo.

A Igreja inicia, no domingo de ramos, mais uma “semana santa”, que a faz contemplar o humilde servidor dos pobres, enfermos e possessos, que acolhia os pecadores e os introduzia numa existência nova, sem exclusões, condenações, sinal antecipador do “reinado de Deus. Os conflitos provocados por sua pregação e ação continuam atravessando a história humana e o coração de cada ser humano. O caminho da “vítima perdoadora”, que foi o dele, é o caminho que deveria inspirar quem se diz seu seguidor/a, a também se deixar reconciliar por ele, tornando-se no mundo aquele/a que promove a paz, podendo, por isso mesmo, ser chamado filho/a de Deus (Mt 5,9). Quem se diz discípulo e discípula de Jesus de Nazaré, mais do que nunca, nesses tempos tão difíceis pelos quais passam a humanidade, em geral, e o Brasil, em particular, deve nessa semana dita “santa”, pedir para ser despertado/a do sono letárgico que cria polarização, cega a inteligência, endurece o coração. A cruz e a ressurreição só têm efeito salvífico se quem diz nelas crerem, se deixa realmente converter pelo que elas expressam: o amor que vence a violência, pela entrega gratuita da vida. Oxalá, ao olhar para aquele que é transpassado, por causa dos crimes de seus algozes, quem se diz seu seguidor/a, seja curado/a da cegueira e do endurecimento, sendo, de fato, perdoado/a.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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