Geraldo De Mori SJ
O dia 2 de novembro, dedicado, segundo a liturgia católica, à memória dos “fiéis defuntos”, foi marcado, em 2021, por acontecimentos que deveriam interrogar a consciência que se diz inspirada e formada pela fé e tradição cristãs: o início, no dia 31 de outubro, da COP 26; a obrigação de honrar os mais de 608 mil mortos pela pandemia no país; a operação das polícias civil, militar e rodoviária de Minas Gerais, que matou 26 homens envolvidos no assim chamado “novo cangaço”, quadrilhas de assalto a bancos.
A COP 26, organizada pela ONU, reúne, entre 31/10 e 15/11/2021, líderes de 196 países em Glasgow, Escócia, para discutir os avanços no enfrentamento do aquecimento global. O principal objetivo dessa Conferência é avaliar os acordos de Paris, assinados em 2015, com várias decisões, relacionadas, sobretudo, à mudança na matriz energética, que prevê, entre outras ações, a redução do uso de combustíveis fósseis. A expressão “blá, blá, blá”, utilizada pelo Primeiro Ministro britânico, Boris Johnson, na abertura da COP 26, chamando os países a efetivamente honrarem os compromissos assumidos, e reverberada por Greta Thunberg, deveria fazer pensar. Em geral, essa expressão remete a palavras que não têm nenhum efeito na prática, ou seja, à dissociação entre o que se diz e o que se faz. No caso das mudanças climáticas, não só se tem falado muito, mas também várias decisões foram tomadas, mas não se traduziram em ações efetivas. Em alguns casos, como no Brasil, a atual política governamental promove o desmonte de instituições, como o IBAMA, o incentivo da exploração dos recursos florestais e minerais da Amazônia, ou a liberação de agrotóxicos proibidos em outros lugares do mundo. O país, que, por sua política ambiental, tinha se destacado como ator importante no cenário internacional, perdeu seu protagonismo, como o demonstra o aumento, em plena pandemia, da emissão de gases efeito estufa em 9,5%. O presidente brasileiro nem se dignou ir à COP 26, numa clara demonstração de desconexão com uma das questões mais cruciais para o futuro da vida no planeta. O que é mais dramático, contudo, é o silêncio conivente das elites que se beneficiam de sua política, numa clara demonstração de que o que é decidido nessa iniciativa internacional é só “blá, blá, blá”.
No dia 2 de novembro, quase dois anos após o início da pandemia, o Brasil contabilizava 608 mil mortos, sendo superado, em número de mortos, somente pelos USA. Durante meses a assim chamada “CPI da Covid” fez um enorme trabalho de investigação sobre a responsabilidade da política adotada pelo governo federal para o enfrentamento da pandemia, responsabilizando o próprio presidente e várias instâncias de seu governo por diversos crimes. Segundo alguns analistas, mais da metade dessas mortes poderia ter sido evitada se outras decisões tivessem sido adotadas. Muito se falou, durante todo esse período, sobre o caráter necropolítico do atual governo, mas, o que mais chama a atenção, na forma como o enfrentamento da pandemia foi conduzido, é uma aparente conivência com essa política por parte de setores importantes da elite econômica nacional, apoiada por faixas significativas da classe média e de grupos religiosos do meio popular de perfil fundamentalista, tanto católicos quanto evangélicos.
Na madrugada do domingo (31/10) para a segunda (01/11), em Varginha, no interior de Minas Gerais, numa operação realizada pelas polícias civil, militar e rodoviária, foram mortos 26 homens, pertencentes a um pretenso “novo cangaço”, que tem amedrontado cidades do interior do país, com assaltos a bancos. Segundo algumas informações, os bandidos, que dispunham de um arsenal enorme de armas e munições, reagiram e a polícia revidou. O que mais chama a atenção, porém, é que não houve nenhuma baixa entre os agentes da ordem e que todos os bandidos tenham sido eliminados, numa clara mensagem de que “bandido bom é bandido morto”. A pouca reação na imprensa e no seio da população, sinaliza, por outro lado, a aprovação desse tipo de operação pela opinião pública, que, sem se dar conta, vai assimilando a adoção da pena de morte na prática, não percebendo que a política que aprovou a venda de armas, e que beneficia os fabricantes de armamentos, é a responsável por esse tipo de organização criminosa. Num dos países que possui a maior população carcerária do mundo, a morte vai sendo banalizada e naturalizada, atingindo principalmente os pobres.
Hanna Arendt, em Eichmann em Jerusalém, faz um relato sobre a banalidade do mal, e mostra que o holocausto foi não só planejado nas altas esferas do regime nazista, mas contou com a adesão de pessoas comuns, habituadas pelo regime a “não pensar”. De certa maneira, esse “não pensar” parece ter se instalado em parcelas expressivas da população brasileira. A isso, de fato, acena a conivência da opinião pública com a pena de morte, para a qual “bandido bom é bandido morto”, numa nação cuja Carta Magna não a admite, mas a adota como sua política prática. Algo parecido se pode deduzir dos que, mesmo após uma investigação ampla sobre a responsabilidade das instâncias máximas do executivo na condução criminosa da pandemia, insistem em não pensar, fiéis a um pretenso mito que os torna incapazes de discernir entre bem e mal. E o que dizer, enfim, dos que sacrificam as políticas de defesa do meio ambiente em benefício de interesses insensíveis para com os ciclos, ritmos e recursos de uma natureza limitada?
A Oração Eucarística VI-D, “Jesus que passa fazendo o bem”, traz uma súplica muito importante, que mais do que nunca deveria ser rezada nesse tempo em que, de tantas maneiras, não só a liturgia nos convida a rezar pelos “fiéis defuntos”, mas a morte de tantas pessoas, mesmo a de “bandidos” e do mundo da vida, se tornou banal: “Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs; inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos; fazei que, a exemplo de Cristo e seguindo o seu mandamento, nos empenhemos lealmente no serviço a eles. Vossa Igreja seja testemunha viva da verdade e da liberdade, da justiça e da paz, para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo”. Para entrar no Reino de Deus, é necessária a conversão, como convida Jesus em Mc 1,1: “O reino de Deus está próximo! Convertei-vos. Crede no Evangelho”. E a conversão não é só uma experiência espiritual, mas se traduz numa existência ética e muda o modo de ver o mundo, a vida, as demais pessoas, o sentido radical da existência. Que saibamos sair do “blá, blá, blá”, que satura a religião e a espiritualidade, para viver de verdade o evangelho do Nazareno.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE