Geraldo De Mori SJ
“Façamos, pois, o elogio dos homens ilustres” (Si 44,1)
No dia 20 de outubro, Frei Carlos Mesters, frade carmelita holandês e um dos biblistas que mais contribuiu para a leitura da bíblia no mundo católico no Brasil depois do Concílio Vaticano II, comemorou 90 anos de vida. Muitos de seus amigos e familiares, pessoalmente e em grupo, prestaram-lhe diversas homenagens, com gestos muito bonitos e emocionantes de carinho e agradecimento. No dia 26 de outubro, Johan Konings, jesuíta belga e uma das referências das traduções e dos estudos bíblicos no Brasil, foi homenageado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, numa cerimônia que recordava seus 80 anos, completados no dia 4 de setembro, quando ele se encontrava em seu país natal. Como outrora o Sirácida, que dedicou vários capítulos de seu livro a fazer o elogio dos “homens ilustres” do passado de Israel (Si 44-50), não se pode silenciar a contribuição desses missionários generosos, cujas vidas foram dedicadas a perscrutar o sentido das Escrituras e a torná-lo acessível ao povo brasileiro.
Carlos Mesters veio para o Brasil aos 17 anos de idade, ainda como seminarista menor, tendo feito o noviciado e os estudos de filosofia no país, e os de teologia e a formação bíblica em Roma e Jerusalém. É um dos criadores do método de leitura popular da bíblia, conhecido, sobretudo, através dos círculos bíblicos, tendo também participado na elaboração do método da leitura orante da bíblia em sua versão mais difundida entre nós. Vários elementos de seu método, como colocar em diálogo o “fato da vida” com o “fato da bíblia” e, neste último, a importância de dar-se conta do “texto”, do “pré-texto” e do “contexto”, difundiram-se de muitos modos no grande tecido eclesial que foram as Comunidades Eclesiais de Base no período pós-conciliar e nas décadas que se seguiram. Para ele, era importante disponibilizar as boas chaves de leitura do texto bíblico para aquele do qual ele surgiu e para o qual ele foi escrito: o povo de Deus. Nesse sentido, no formato mais simples, que era o círculo bíblico ou, posteriormente, na leitura orante, era necessário não só dar-se conta da vida do leitor ou do ouvinte, em geral um sujeito comunitário, popular, mas também do que acontecia no texto bíblico narrado. Para a compreensão desse texto também deveriam intervir informações sobre sua formação e sobre o contexto no qual foi elaborado. O encontro entre “mundo do texto” e “mundo do leitor” fazia emergir novos significados ao texto, que se tornava um verdadeiro farol a iluminar as muitas situações existenciais pelas quais passava o povo. Mesters se esforçou não só por tornar o texto bíblico acessível e compreensível ao povo mais simples das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), descobrindo na leitura que daí emergira como o Espírito de Deus atuava no povo mais simples, dando novo sentido e atualidade ao texto bíblico, mas também por formar lideranças intermediárias que pudessem colaborar na difusão desse tipo de leitura para o conjunto do povo cristão. Para isso, em 1979, juntamente com Jetther e Lucília Ramalho, Agostinha Vieira, criaram o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), que tanto tem fecundado a caminhada das CEBS. Não se pode entender a caminhada das CEBs e da teologia da libertação no Brasil sem o influxo dado a elas pela escuta da Palavra de Deus que se fez a partir do método criado por Mesters.
Johan Konings fez toda sua formação acadêmica em seu país de origem. Apesar de sua inclinação inicial para a filosofia, especializou-se em exegese bíblica na prestigiosa KU Leuven, Bélgica. Sua tese sobre o Evangelho de João, com mais de seis tomos, foi um acontecimento na universidade. Concluídos seus estudos, em 1972, ele veio como padre “Fidei donum” para o Brasil, trabalhando por vários anos na PUC RS e no Colégio Cristo Rei, faculdade dos jesuítas, em São Leopoldo, RS. Já nessa época iniciou um trabalho junto aos jovens universitários, tendo sido assessor de uma das iniciativas da pastoral universitária então no país, o MCU (Movimento Cristão Universitário). Além da docência e da pesquisa na PUC RS, Konings iniciou também uma colaboração com a PUC Rio. Em 1985 ingressou no noviciado da Companhia de Jesus, tornando-se jesuíta e iniciando sua atividade na então Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES), atual Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Já reconhecido por sua competência no ensino sobre o Evangelho de João, começou também a colaborar em vários projetos de Edições Loyola, como a direção da coleção Bíblica Loyola, a assessoria para a tradução de várias obras teológicas para o português e em projetos mais ousados, como a supervisão da tradução do Denzinger-Hünerman, obra que reúne o conjunto das declarações dogmáticas das principais igrejas cristãs. Começou ainda uma colaboração importante com a CNBB, coordenando durante vários anos a equipe encarregada da tradução da Bíblia que se tornou a Bíblia da CNBB. Foi diretor da Faculdade de Teologia do CES, quando ajudou na reforma da proposta curricular do curso de graduação. Assumiu ainda a função de Reitor do CES e participou na elaboração de muitas obras na área bíblica e teológica, demonstrando sempre uma enorme capacidade de trabalho, um grande bom humor e uma generosidade incrível.
A breve recordação de algumas das atividades e contribuições desses dois gigantes dos estudos e da formação na área bíblica no Brasil não pretende dar conta do conjunto da ação de ambos, nem das contribuições que deram e dão ao estudo da Bíblia no Brasil. Quer, por um lado, fazer uma memória sintética e agradecida de duas vidas feitas de uma generosidade impressionante, que supôs muita abnegação e dom de si, mas que teve também a capacidade de chegar até àquilo que é a base do mais genuíno da cultura brasileira, atestado pelo conhecimento como ninguém da língua e de elementos constitutivos da brasilidade, numa autêntica abertura à alteridade, base de todo processo de inculturação. Através de seus escritos e traduções, não só a Bíblia pôde ser mais conhecida e acessível a milhões de brasileiros, mas também a voz dos mais simples que ela interpelou e deu direção, pôde também ser ouvida e valorizada. Por outro lado, a recordação dessas duas vidas entregues à Palavra, precisa ser conhecida e valorizada porque mostram o caminho que a Palavra quer fazer em e através de nossas palavras. Somente depois de “padecer” a Palavra, numa paciente e longa escuta de seus silêncios, estranhezas, questionamentos, claros-obscuros, é que se poderá arriscar palavras que busquem dizer o que ela diz na vida de quem se arriscou a ser lido por ela.
A Igreja católica do Brasil deve muito a Mesters e a Konings, homens com qualidade humana, espiritual, acadêmica e pastoral tamanhas que se tornam como que provocações para todas as novas gerações que se aventurem a se colocar à escuta da Palavra. Seu legado permanecerá por décadas entre nós, mas, para além de tudo o que escreveram, ensinaram, traduziram, conseguiram captar do mistério que se deu a conhecer nessa grande biblioteca da humanidade que é a Bíblia, o que permanecerá sempre no coração de todos os que tiveram a graça de os conhecer e com eles conviver é que o que eles entenderam da Palavra e o que disseram através de palavras, tornou-se carne em suas vidas e nas vidas de todos os que se deixaram por eles ensinar e guiar.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia d FAJE