Cláudia Maria Rocha de Oliveira
Na Encíclica Fratelli Tutti, o samaritano personifica um ideal que é caracterizado por uma virtude fundamental: a caridade, isto é, o amor. Em consequência, podemos dizer que o amor é a virtude que torna possível a amizade social e a fraternidade universal. Mas, o que caracteriza e define essa virtude?
O amor deve ser compreendido em vários níveis. A caridade é uma virtude pessoal, social e política. Ela se constitui a partir da lei do êxtase, isto é, a partir do movimento de saída de si. Quem verdadeiramente ama se lança na direção do outro, vai ao encontro dele. Neste sentido, a caridade deve ser compreendida como o centro de toda a vida social sadia e aberta. Quando o amor se constitui como motor que orienta as relações entre as pessoas é possível tecer relações de confiança, solidariedade, amizade.
Mas, se o amor nos lança na direção dos outros, a verdade ilumina o movimento do amor. Isso significa que a verdadeira caridade pressupõe compromisso mútuo entre amor e verdade. A pessoa que ama é, constitutivamente, ser racional e livre, portanto, ser dotado de inteligência e vontade. Ora, se a vontade nos abre ao acolhimento da realidade que se doa, a inteligência orienta a abertura da vontade em direção à verdade. Portanto, a busca da verdade é fundamental para que a virtude da caridade se exerça plenamente.
Francisco indica a importância do desenvolvimento das ciências. Para que haja amizade social e fraternidade universal torna-se, então, indispensável combater todas as formas de desinformação e de exclusão. As pessoas precisam ter acesso à educação e informação de qualidade. Além disso, é fundamental garantir as condições necessárias para o desenvolvimento da pesquisa. As orientações da ciência devem ser levadas em consideração na tomada de decisões. A virtude da caridade, iluminada pela verdade é condição de possibilidade da amizade social e da fraternidade universal. O amor é condição para a construção de um mundo que seja capaz de superar a violência e construir a paz.
O papa recorda, ainda, que o encontro com o outro às vezes se torna difícil por que existem feridas abertas provocadas por conflito. Diante dos conflitos sociais, buscamos por justiça. Para a ética clássica, a virtude social por excelência é a justiça. A partir de uma ética deontológica também seriamos conduzimos a afirmar o dever de agir de modo justo. Podemos colocar, então, a seguinte questão: a justiça é condição para a concretização da amizade e da fraternidade social? Sim e não. A justiça é uma virtude necessária, mas não suficiente. Para a Encíclica, a virtude por excelência não é a justiça, mas sim o amor. Isso significa que o amor deve corrigir e dirigir as virtudes morais. Ele está acima até mesmo da justiça. O amor não elimina a justiça, não a descarta, mas a conduz a um sentido mais pleno. Isso porque o clamor por justiça, sem o corretivo do amor, pode conduzir a desencontros e busca por vingança. Surgem daí falsas alternativas para a paz, como as guerras e a pena de morte. Contudo, essas alternativas não eliminam o conflito e nos tornam piores à medida que nos tornam incapazes de reconhecer a verdade da dignidade de todo o ser humano.
No texto Amor e Justiça, Paul Ricoeur explicita a dialética existente entre esses dois termos. Ao reconhecer que há uma desproporção entre eles, ele propõe a economia da doação: a única capaz de fundamentar o mandamento de amar os próprios inimigos. Ora, em nossa reflexão sobre fraternidade universal, podemos dizer que o dom seria capaz de garantir a possibilidade da cicatrização das feridas e da superação dos conflitos. Para cicatrizar as feridas, o papa indica a necessidade do perdão, da misericórdia. O perdão não elimina a justiça. Exige a memória capaz de tornar presente algo que não pode ser esquecido. Isso significa que, por um lado, “a justiça deve ser feita”. Porém, ao mesmo tempo, o perdão torna possível ir além. O perdão garante a possibilidade de reestabelecer os laços que unem as pessoas. Mas, o que está na base da possibilidade do perdão é, justamente, a capacidade de amar.
O amor, portanto, é a virtude fundamental. Ele é condição indispensável para que possamos construir um mundo onde todos possam se reconhecer como irmãos e irmãs. O amor torna possível a edificação de uma realidade no qual a vingança cede lugar ao perdão e o egoísmo é abandonado em nome da solidariedade, da busca da verdade e do bem comum.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE