Alfredo Sampaio Costa SJ
As mais antigas tradições cristãs perceberam a riqueza inesgotável da oração de contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo. Entre eles trazemos aqui Ludolfo de Saxônia, autor da “Vita Christi” que transformou o orgulhoso cavaleiro Íñigo de Loyola em um Peregrino que nada mais queria do que revestir-se das insígnias de Cristo pobre e humilhado, com a Cruz às costas.
González Buelta assim situa a importância da consideração orante dos Mistérios da Vida de Cristo, a serem contemplados “como se eu estivesse presente”, como ensina Ludolfo:
“Jesus trouxe toda a novidade trazendo-se a si mesmo” (Santo Irineu). Mas isso não quer dizer que nós o tenhamos já compreendido plenamente. Desde esta situação atual que abre a um leque de tradições culturais e religiosas como nunca antes na história, e desde nossas complexas situações pessoais, aproximamo-nos de Jesus, de cada uma das cenas da sua vida, de cada um de seus mistérios, porque ele os viveu para as pessoas de todos os tempos, não só para o pequeno grupo que o cercava no momento de sua vida. Nós acolhemos hoje sua novidade imprevisível, aproximando-nos de seu mistério através da contemplação de cada momento de sua vida” .(1)
Aproximamo-nos de Jesus “desde nossas complexas situações” e “em cada parcela (expressão) de sua vida terrena”, captamos lampejos da eternidade. E assim vamos crescendo no nosso amor por Ele e no desejo de segui-Lo mais e mais!
Quando nos aproximamos de um texto da Sagrada Escritura, quando tomamos uma cena da vida de Jesus para contemplar, é preciso inicialmente tomar consciência que nessa vida humana que o Verbo de Deus assumiu está também a minha existência, que Ele por amor também assume de agora em diante, colocando assim as bases para um diálogo continuado e eterno comigo.
A Encarnação não é um evento arqueológico que enxergamos num passado longínquo. González Buelta insiste que o Verbo encarnado assumiu também a minha vida, por amor, e por isso podemos verdadeiramente conversar com Ele pessoalmente. Santo Inácio, apropriando-se criativamente da tradição da Lectio Divina beneditina, sentia reverberar nas suas entranhas mais profundas cada um dos Mistérios da vida de Cristo, que o interpelavam a uma mudança de vida. Isso explica por que, ao escrever o famoso livrinho dos Exercícios, ele insiste trazendo algumas frases desconcertantes, entrelaçando as existências de Cristo Nosso Senhor e as nossas: “Imaginando Cristo, nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colóquio: como, de Criador, se fez homem e como, da vida eterna, chegou à morte temporal e assim morreu por meus pecados” (EE 53). Quando fiz meus primeiros Exercícios espirituais, como jovem inexperiente noviço jesuíta, confesso que tal frase me causou indignação: como poderia Cristo morrer por meus pecados, se morreu dois mil anos antes de eu nascer? Demorou muito tempo até que eu compreendesse que a Encarnação continua acontecendo!
A humildade de Deus que dialoga conosco: Na nossa vida de oração, somos chamados a acompanhar, desde dentro, o itinerário de Nosso Senhor, no seu incansável movimento amoroso encarnatório. O Verbo se fez Carne, se fez homem, mas que tipo de homem? Quais suas opções, escolhas, renúncias? O que abraçou verdadeiramente e o que jamais consentiu na sua caminhada entre nós? Importa muito na oração realmente termos os olhos fixos em Jesus, como nos exorta o autor da Carta aos Hebreus: “Corramos com constância a corrida que nos espera, com os olhos fixos naquele que iniciou e realizou a fé, em Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezou a humilhação e sentou-se à direita do trono de Deus. Refleti sobre aquele que suportou tal oposição dos pecadores, e não sucumbireis ao desânimo. Ainda não resististes até o sangue em vossa luta contra o pecado” (Hb 12,1-4).
Nossa oração se resumirá, pois, em ver Jesus, ouvir o que diz, considerar o que faz. A Ele toda a honra e glória!
Sigamos ainda uma vez mais González Buelta:
“Deus não se fez simplesmente homem, mas sim um homem pobre, que nasceu nos subúrbios de Belém e morreu expulso de Jerusalém. Essa imagem de Deus e a humildade com que se aproximou de nós, transformou a vida dos simples, mas provocou a rejeição dos que se viam ameaçados em seus privilégios, instalados na segurança religiosa de seus conceitos, na superioridade que lhes conferia sua justiça e no poder de sua riqueza. Em Jesus Deus se revela como um Deus pobre e humilde, socialmente débil, que desceu até o fundo da vida humana, e a partir dali assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à plenitude da vida em uma solidariedade sem fim” .(2)
Estamos diante de um Deus que se abaixa, se inclina para poder “colocar-se à altura” (!) da nossa vida, não como um Todo Poderoso que nos esmaga com sua Onipotência, mas como um “companheiro” que se interessa verdadeiramente por nós e tem interesse em conversar conosco sobre o que está se passando na nossa vida.
“Jesus assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à sua plenitude”: Nas palavras de González Buelta, ecoa a definição mais perfeita da vida de Jesus, registrada por Lucas nos Atos dos Apóstolos (10,38): “Ele passou pelo mundo fazendo o bem!”. Somos convidados, no movimento da oração, ao configurar-nos a Cristo, a assumir, com a sua graça, essa missão de nos aproximarmos das vidas descartadas pela sociedade, insuflando nelas o Espírito de Vida e Consolação!
O “não saber”, “a diferença” e “o sem sentido” se integram contemplando a Jesus: Muitas vezes, quando nos inclinamos para orar, nossos corações estão cheios de angústia, a mente repleta de dúvidas atormentadoras, somos abraçados pela incerteza e incapacidade de ver bem o que fazer. Pois bem, é exatamente em momentos como esses, onde o peso da vida e os limites próprios, da Instituição, da sociedade pesam sobre nós, que a oração se faz mais premente e essencial, por mais dura que seja. Comenta González Buelta:
“Jesus é a Verdade e o sentido último onde se podem integrar a alegria e os momentos dilacerantes da vida. Na contemplação nos aproximamos dele tratando de compreender sua pessoa, de entender sua lógica desconcertante, que nos permite ordenar-nos a nós mesmos e a toda a realidade em torno de outra melodia diferente da que escutamos normalmente em nosso mundo. É a sabedoria de Deus que nos ama a partir “de uma debilidade” que provoca o escândalo dos judeus e a desqualificação dos pagãos ilustrados que consideram a cruz e a ressurreição como uma loucura (1 Cor 1, 18-25). Jesus se aproximou da “diferença” dos doentes, pobres, pecadores, samaritanos e últimos. Também ele se sentiu atravessado pelo “não saber” doloroso, não em coisas pequenas, mas no centro mesmo de sua missão. Não seria possível cumprir sua missão sem passar pela cruz? (Mc 14,35). Nem sequer sabe o dia nem a hora do final da história! (Mc 13,32)” .(3)
Trata-se de um parágrafo para ler e reler, detendo-nos onde experimentarmos maior consolo espiritual. A mim me traz muita esperança, ao afirmar que é na nossa fraqueza que somos escolhidos. Pois não é verdade que a maior parte das vezes em que buscamos a oração não era exatamente por nos sentirmos desfalecidos e impotentes? A sabedoria da cruz, embora não sejamos nem judeus nem gregos, também não nos desconcerta ainda hoje?
Nos momentos mais árduos, áridos, onde parecemos carregar nos ombros um fardo insuportável, gosto de rezar 2 Coríntios 12,10: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte”. E Fl 4,13: “Pois tudo posso naquele que me fortalece”.
Ter que caminhar “em meio ao não-saber” pode ser vivido como um tormento cotidiano ou como uma aventura de fé. Mas temos que admitir que os grandes personagens da Sagrada Escritura não foram poupados de trilhar esse itinerário. Basta aqui evocar os “grandes” Abraão, Moisés e ainda Nossa Senhora, “que tudo guardava no seu coração”.
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
1- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 78.
2- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 79.
3- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 83.