Marília Murta de Almeida
Apesar de ter nascido, crescido e vivido sempre em Minas, corre em mim um tanto de sangue cearense. A vida dos antepassados, todavia, parece ser menos a origem do sangue que corre em nossas veias, e mais a fonte das veredas que formam nosso imaginário. O pai que veio do Ceará – assim como o avô materno – gerou em mim a imagem do sertanejo.
Figura que, entretanto, vive muito além de mim, pois faz parte do imaginário brasileiro. E, nesse momento de tão grande dificuldade por que passamos, busco aqui trazer à tona algumas nuances dessa imagem de resistência e força. O sertanejo é o habitante do sertão, das terras longe do mar, que foram tomadas pela colonização ao longo dos séculos. Que hoje configuram o grande interior do Brasil, entre floresta, seca, agronegócio, riqueza e pobreza que nunca se misturam inteiramente. Em meio ao mundo moderno e técnico, o sertanejo segue sendo aquele que guarda em si um modo de viver não completamente cooptado pelas novas formas impostas pela contemporaneidade. É o brasileiro do Brasil profundo que ainda há de fazer face ao Brasil das superfícies.
Euclides da Cunha, em seu esforço brutal de descrever os sertões do Brasil na grande resistência do Arraial de Canudos, cunhou a clássica definição: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. A força, assim, surge como o traço principal daquele que lutava por resistir na vida. Resistir frente às dificuldades de sobrevivência física, mas também da sobrevivência simbólica que significava um modo de vida em risco. E que se desdobrou também em resistência política e bélica.
Clarice Lispector, em seu também já clássico A hora da estrela, tratando de aproximar-se dos personagens nordestinos Macabéa e Olímpico, parafraseia Euclides da Cunha, nos fazendo dar um passo ao lado na compreensão, e diz assim: “o sertanejo é antes de tudo um paciente”. A paciência toma o lugar da força, ou se acresce a ela. A paciência é talvez força contida, força que permanece, que se repete, que não alcança de uma vez a vitória.
Paciência parece ser o que nos pede o tempo presente. Não uma paciência frouxa, sem lastro, que seria apenas um modo vazio de esperar pela mudança dos tempos. Mas sim a paciência sertaneja, fruto da força que resiste. Paciência que se faz na ação que se sabe ainda insuficiente e, portanto, sujeita a fracassos e recomeços. Paciência que garante a força de levantar após a queda, recomeçar após a destruição, resistir enquanto for preciso. Paciência do cacto que guarda em si a água que é escassa e que garante sua sobrevivência.
Paciência e força de quem não se deixou levar pelas ondas do tempo e que, por isso mesmo, mantém viva a possibilidade de refazimento de uma cultura e de um modo de vida que possam um dia vir a configurar outra face para o país, como nos apontam Gilberto Gil e Dominguinhos na belíssima canção “Lamento sertanejo”. O sertanejo se lamenta da vida na cidade, o que podemos entender metaforicamente como não apenas referido à relação sertão/cidade, mas também àquela entre o chamado Brasil profundo e o Brasil das superfícies do poder e das tendências de vida e de cultura. Vejamos um trecho da canção:
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando a esmo
A multidão dos grandes centros é retratada como boiada que caminha sem saber para onde e nem por quê. Caminha a esmo, seguindo acriticamente o ritmo imposto de fora. O sertanejo não adere, não caminha a esmo e, mesmo jogado na cidade e sendo capaz de nela sobreviver, mantém seu modo de ser. Quase sem saber de nada – como também não sabem os que seguem na boiada – parece entretanto saber o que não deve fazer.
Assim, podemos, daqui, escutar o lamento dos que são de lá – “do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato, da caatinga, do roçado”. Lamento que parece ter a indicação de um rumo de saída: força, paciência, aderência ao que forjou o próprio ser, resistência ao que surge como convocação inequívoca para um modo de vida predominante. E, assim, voltar o olhar para o sertão, para o de dentro desse país tão denso, esquecendo, ao menos por uns instantes, o chamado constante das civilizações que vêm pelo mar, e escutar as vozes da terra, das veredas, dos rios que configuram nossos sertões. Fazer do Brasil um país com a cara do seu povo. Com força, paciência e lamento, na resistência que só pode ser fruto de nossa própria memória.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE