Geraldo De Mori SJ
“Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes” (Lc 1,52)
No dia 15 de agosto a Igreja católica celebra a festa da Assunção de Nossa Senhora, conhecida em muitos lugares como festa da Boa Viagem, festa de Nossa Senhora da Glória, de Nossa Senhora da Boa Morte ou, no Oriente cristão, como festa da Dormição de Maria. Embora a devoção à Assunção da mãe de Jesus seja muito antiga, somente em 1950 o Papa Pio XII, após uma consulta feita às igrejas católicas do mundo inteiro, proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora ao céu, em “corpo e alma”.
Muitas pessoas associam a Assunção a uma espécie de passagem de Maria à glória sem passar pela morte. Os nomes acima são reveladores dessa percepção. Por exemplo, o termo “dormição” parece indicar que a mãe de Jesus não morreu de verdade, mas que simplesmente dormiu, acordando na outra vida. Por sua vez, os apelativos “boa morte” e “boa viagem”, mais que da “morte” ou da “viagem” definitiva de Maria, remetem à hora da morte do fiel, a quem ela protegeria nesse momento final da vida. Os termos da definição solene do dogma são, contudo, claros: afirmam que “a imaculada Mãe de Deus, a sempre vigem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”. Ao evocar o término do “curso terrestre” da vida de Maria, o texto afirma, sem dúvida, que ela morreu, mas, ao dizer que ela foi assunta ao céu em “corpo e alma”, pode levar a pensar que ela não morreu de verdade.
Essa ideia de que Maria não morreu verdadeiramente pode ser aproximada da experiência existencial que ela encarna no imaginário dos fiéis, a da mãe que gera, dá à luz, amamenta, cuida, acompanha e protege seus filhos e filhas ao longo da vida, guardando, sob esse ponto de vista, as marcas de um “sempre”. Embora simbolize tudo isso, persiste o risco permanente de atribuir a Maria um papel que não é o seu e que ela nunca quis ocupar na história da salvação e nem na história das Igrejas cristãs, a saber, o do próprio Deus ou o de seu Filho. Nesse sentido, é interessante revisitar o dogma da Assunção mais uma vez, buscando descobrir nele seu sentido teológico mais profundo.
Ao afirmar que Maria foi “assunta ao céu em corpo e alma”, Pio XII não quis dizer que ela foi preservada da morte. Com efeito, se Jesus, que é o “único mediador entre Deus e a humanidade” (1Tm 2,5), não foi “poupado por Deus, mas entregue por nós” (Rm 8,32), e se Maria se dizia a “serva do Senhor” (Lc 1,38), então não se pode tirar dela aquilo que é próprio da vida humana: a morte. O que o dogma da Assunção sinaliza é que, ao viver radicalmente a existência enquanto servidora, Maria descobriu nessa condição aquilo que a elevava. Se o mistério do Filho foi determinado pelo fato de ele ter assumido a condição humana na forma de escravo e, a partir dela, ter sido glorificado pelo Pai (Fl 2,6-9), o de sua mãe, ao viver a existência como serviço, pode ser reconhecido como herdeiro da glória do Filho Ressuscitado. Nesse sentido, o dogma da Assunção remete à ressurreição de Jesus e não diz respeito somente a Maria, mas a toda a humanidade. De fato, segundo Paulo, Cristo, ressuscitado dentre os mortos, tornou-se as “primícias dos que morreram” (1Cor 15,20). Todos morrem em Adão e todos serão vivificados em Cristo, mas, “cada um por sua ordem. Primeiro Cristo como primícias, depois os que são de Cristo na sua vinda” (1Cor 15,22-23). Sem dúvida alguma quem mais se assemelhou a ele na humildade do serviço foi sua mãe. Por isso, ela, mais do que ninguém, “foi de Cristo”. Portanto, ao venerá-la como “assunta ao céu”, a Igreja honra nela aquilo que é a fé cristã na ressurreição de Cristo, prometida aos que Nele creem.
Que sentido tem celebrar a Assunção de Nossa Senhora? Contrariamente ao que expressam certas devoções, não se trata de tê-la como referência para ganhar uma “boa morte” ou uma “boa viagem”, muito menos ainda de negar-lhe a passagem pela morte. Isso é muito pouco para a grandeza do que o dogma expressa. Ao dizer que ela foi assunta ao céu em “corpo e alma”, o texto quer mostrar que ela alcançou a plenitude para a qual a humanidade foi chamada desde antes da criação do mundo: “ser santa e irrepreensível diante dele no amor” (Ef, 1,4). E essa santidade passa pelo caminho do serviço. Jesus mostrou que esse caminho pode levar à cruz, mas que nele também reluz a glória para a qual somos prometidos. Toda a existência de Maria é transpassada por essa dinâmica, que fez nela “grandes coisas”, como ela espressa no Magnificat (Lc 1,49).
Numa época em que a humilhação dos pobres pela arrogância dos poderosos alcançou sua máxima expressão, tanto quantitativa quanto qualitativa, que sentido tem celebrar a Assunção? Certamente não para canonizar a humilhação ou para dar-lhe um sentido ideológico, tornando a religião “ópio do povo”. O serviço pelo qual Maria conheceu a glorificação é um serviço que denuncia os poderes estabelecidos, como tão bem ela também expressou no Magnificat, ao dizer que o “Senhor derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes” (Lc 1,52). Na mística da religiosidade popular, como insiste com tanta veemência o Papa Francisco, essa vitória dos humildes e humilhados se dá na perseverança a toda a prova, que eles encontram na resiliência da Mãe de Jesus. Essa resiliência, expressa em rezas e benditos à Virgem assunta ao céu em corpo e alma, pode sem dúvida alguma apontar caminhos novos para continuar lutando contra toda esperança, num tempo que só parece alimentar o desespero e não vê nenhuma saída.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE