Alfredo Sampaio Costa SJ
Deus não age no homem como se fosse um ser estranho, introduzindo nele realidades que não lhe sejam próprias (1) . Fala a ele por meio de seus pensamentos e sentimentos. A ação do Espírito Santo é percebida pelo homem como sendo a verdade mesmo da pessoa humana. Os pensamentos e sentimentos suscitados por Deus nos movem na direção de nossa plena realização. Na antropologia inaciana, alguns termos são fundamentais, tais como “afetos”, “desejos”, “querer”, “sentir” (2) .
O afeto ou “afeição” inaciana contém um princípio de passividade e um princípio de atividade próprio de todo afeto ou paixão (3) . Os afetos são forças dinamizadoras que é preciso integrar, não neutralizar. Quando Inácio no primeiro número dos Exercícios fala da necessidade de “tirar de si todas as afeições desordenadas” (EE 1), não é para ficarmos sem afeições, mas sim para conduzi-las ao seu verdadeiro objeto: a Deus. Só somos autenticamente livres se vencemos e reorientamos (“ordenamos”) nossos afetos. O problema está em como lidar com as afeições que Inácio chama de “desordenadas”. Vejamos rapidamente quais seriam as suas características principais (4) : Ela produz uma atração afetiva para um algo que atrai, que implica uma valoração positiva do mesmo. Será uma inclinação patente e apaixonada ou um apego mais sutil, encoberto pelo uso de mecanismos de defesa que racionalizam e mascaram a afeição aos olhos do sujeito. Este objeto de afeição é em si mesmo bom ou indiferente, não constituindo nada mau ou pecaminoso. A afeição se refere a algo central e determinante da direção de uma vida, que impede decisivamente de optar segundo Deus, de modo que não se alude com essa expressão aos incontáveis apegos que o ser humano experimenta, ainda que não sejam sempre ordenados, pois geralmente não determinam a direção da vida. A afeição desordenada determina realmente a direção da vontade do sujeito, que assim busca principalmente, ainda que sem sabê-lo, seu próprio amor, querer e interesse (EE 189).
Portanto, desde o ponto de vista antropológico, a afeição desordenada é uma motivação afetiva determinante em algum tema central da vida de uma pessoa, em função da qual esta toma decisões importantes. É uma poderosa vinculação afetiva que não obedece facilmente às leis da racionalidade, pois é um apego simbolicamente carregado de significados ocultos aos olhos do implicado. Por essas breves explicações já se pode entrever a importância que tem para o discernimento da vontade de Deus o saber reorientar as afeições que se encontram desordenadas. Precisamente, um dos elogios que foram feitos nos primeiros tempos dos Exercícios e dos que os davam é que “finalmente encontramos mestres acerca dos afetos” (5) .
Na sua dimensão ativa, o afeto ou afeição inaciana está ligado ao desejo e ao querer. O desejo implica o “tender para”, evocando a ausência do objeto que se deseja. O desejo assinala o princípio dinâmico e aberto dos afetos, vinculado à vontade. Na concepção de Inácio, os desejos têm uma conotação particularmente positiva, enquanto são fonte de energia e movimento. Nesse sentido, Deus também deseja: “o mesmo Senhor deseja dar-se o mais que pode” (EE 234). Daí a importância de ser um homem de desejos. Porque o desejo último que subjaz a todos os desejos é o desejo de Deus. Um anelo íntimo, último e primeiro, que só se saciará quando estivermos em Deus, como afirmava Santo Agostinho (7) .
Inácio vincula com frequência o desejo ao termo “querer”, apelando assim para a vontade do exercitante, como se a eficácia dos Exercícios estivesse na determinação e conjunção do querer e do desejar. De fato, todas as meditações e contemplações começam por um “pedir a Deus o que eu quero e desejo” (EE 48, 55, 65, 91, 104, 139, 193, 203, 221, 233).
O “querer” é o que dinamiza o aspecto ativo dos afetos. “Querer” é o exercício livre de determinar-se por uma coisa ou por outra: “indo sempre buscar o que quero” (EE 76). Muitas vezes isso deu margem para se falar de um “voluntarismo inaciano”. Mas trata-se do “volo” latino, relacionado com o núcleo da liberdade de cada ser humano. Na quinta anotação dos Exercícios se diz que ao exercitante muito lhe aproveitará entrar com grande ânimo e liberalidade para com seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade” (EE 5). Na tradição oriental essa atuação insubstituível do ser humano para se abrir à ação de Deus é chamada de “synergeia”, que literalmente significa “colaboração”. Assim o querer inaciano não é mais do que a livre determinação do exercitante de receber a atuação de Deus, não para substitui-la, mas para acolhê-la.
O “sentir” aparece 33 vezes no texto inaciano dos Exercícios, e no breve trecho do Diário Espiritual que chegou até nós aparece 108 vezes; é o lugar da unificação do ser humano, onde conhecimento e amor se encontram, convocando-os cada vez mais para ir ao seu centro, para esse espaço interior onde tem lugar o Encontro, a união com Deus ao mesmo tempo que a revelação da vocação pessoal.
Portanto, falar de discernimento significa voltar o nosso foco e interesse para o que se passa no nosso mundo interior (moções, impulsos, atrações, rejeições, pensamentos, sentimentos, afetos). Por que é tão importante observar que sentimentos acompanham nossos pensamentos, ou de quais sentimentos nascem determinados pensamentos?
Porque podemos ter pensamentos diversos, todos bons, mas não se pode seguir todos. O problema não é só ter pensamentos evangélicos, mas saber a qual deles se deve dedicar a vida; qual deles deve ser seguido.
Os pensamentos compõem aquela mentalidade de fundo que cria a orientação da pessoa – e ali se trata de fazer próprios os pensamentos bons, justos, para ter aquele olhar são, espiritual – mas de outra parte compõem também aquelas visões que são o motivo das opções e das escolhas orientadoras da vida, como também das pequenas escolhas de cada dia. Trata-se, portanto, de diversos níveis, horizontes, pesos. Nem todos os pensamentos têm o mesmo peso. Alguns pensamentos, se seguidos, excluem por si outras possibilidades. É preciso estar seguro não somente de qual pensamento seja bom, mas qual seja bom para mim, na minha vida. A dificuldade se coloca porque o acesso ao coração e ao espírito não são imediatos. A semente de divindade que se encontra oculta nele não pode se desvelar nem despertar por si mesma. Daí a necessidade de um trabalhar sobre o coração, para dispô-lo, ordená-lo, reorientá-lo, transformando os afetos (8) .
Para nossa consideração: temos prestado atenção ao que se passa no nosso mundo interior? Afetos, querer, liberdade fazem parte da nossa vida espiritual?
1. Marko Ivan Rupnik, O Discernimento, São Paulo: Paulinas 2004, 28.
2. Cf. Javier MELLONI, La mistagogia de los Ejercicios. Mensajero/ Sal Terrae, Santander/ Bilbao 2001, 75.
3. Cf. SANTO TOMÁS: “Fala-se de paixão em sentido próprio quando a ação e a paixão consistem em um mesmo movimento”, De Veritate, q. 26, art. 1.
4. Seguimos aqui a Luis María GARCÍA DOMÍNGUEZ, “Afección desordenada”, in GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, I, 92-93.
5. Cf. MHSI, Fabri Monumenta, 64.
6. “Em muitos momentos a palavra afeto, para Inácio, é sinônimo de desejo. Quase sempre que se alude a afetos desordenados se refere a desejos desordenados. Mas o afeto é mais amplo que o desejo, porque abarca também o temor, que é contrário ao desejo. Os temores são afetos poderosíssimos que tem uma força mais imperiosa que os desejos. Adolfo CHÉRCOLES, La afectividad y los deseos, Eides 16, Cristianisme i Justícia, Barcelona 1995, 4.
7. Cf. Confissões X, 27,38 e 28,39.
8. Cf. Javier MELLONI, La mistagogia de los Ejercicios, 100.
Pe. Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE