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O coração, profundidade do ser chamado a amar

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Pretendemos dedicar as reflexões de espiritualidade deste mês de junho para aprofundar, neste Ano Inaciano, algo tão caro à Companhia de Jesus: a espiritualidade do Coração de Jesus, Coração Amoroso, Compassivo e Filial. Neste primeiro texto, vamos nos aproximar do simbolismo do coração como “profundidade do ser”.

Uma primeira aproximação a esta rica espiritualidade nos mergulha no universo simbólico que nos ajuda a viver nossa experiência espiritual diante do Mistério mais profundo: Deus é Amor, diz S. João. Falamos de “coração” para adentrar nesse Mistério inesgotável do Amor de Deus por nós manifestado em Cristo Jesus.  Não se pode dizer que a palavra “coração” seja tomada somente em um sentido metafórico, quando significa “profundidade do ser”, ou “amor”, “mente”, “sentimentos”.

“Coração” é uma daquelas palavras que exprimem a unidade profunda, substancial do ser humano (sua realidade total), a qual é originária em relação aos dois distintos princípios dos quais o humano se compõe (alma e corpo; espírito e matéria); estes dois princípios, de fato, antes de serem unidos para constituir a unidade humana psicossomática, não possuíam um ser próprio ou uma inteligibilidade própria:

« A unidade da alma e corpo é tão profunda que deve se considerar a alma como ‘forma’ do corpo; isso significa que, graças à alma espiritual, o corpo, composto de matéria, é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria, no homem, não são duas naturezas conjuntas, mas a união delas forma uma única natureza» (Catecismo da Igreja Católica 365).

A pessoa humana possui verdadeiramente dentro de si um “fundo” (que o Catecismo chama de «profundidade do ser ») anterior à pluralidade dos elementos que o compõem. É desta «profundidade» que se irradiam as diversas realidades que compõem o indivíduo humano, e é ela que as mantém unidas entre si. Tal profundidade, enquanto experimentada pelo homem como “centro” originário da pessoa psicossomática, é que designamos com a palavra “coração”. O coração é um conceito que reflete a totalidade do ser humano. É uma palavra que expressa a unidade original, prévia, substancial do homem. Designa algo que não é o produto da combinação de realidades antes separadas para depois serem reunidas de um golpe. O homem experimenta o centro de si mesmo como o centro de uma pessoa que é indissoluvelmente psicossomática. Ele não se reconhece como um espírito que teria tido, “igualmente”, um corpo, mas uma pessoa que, enquanto pessoa espiritual, deve se desenvolver ao mesmo modo como corpo e segundo uma dimensão corporal.

Falamos de “coração” para indicar o lugar onde se dará essencialmente a abertura do ser humano a Deus e aos demais. O fundo mais íntimo do ser humano é, antes de qualquer experiência, abertura a Deus.  De fato, anteriormente a toda experiência concreta, o coração (a profundidade do ser) é, por si mesma e desde sempre (por natureza), uma relação inalienável, abertura, orientação a Deus e aos homens.

Como conceito que reflete a realidade total do ser humano, “coração” designa o centro mais original da unidade psicossomática da pessoa. A evolução ou desenvolvimento do ser humano é sempre uma tomada de posição (frequentemente somente implícita) diante dessa orientação do coração, é sempre uma decisão por meio da qual se aceita essa orientação ou se tenta (sem conseguir) destruí-la. É ali, no centro do seu ser, que a pessoa é chamada a tomar partido e a assumir as suas responsabilidades[1].

“É ao coração que [na Bíblia] são atribuídas as qualidades morais – retidão, firmeza, fidelidade, simplicidade, assim como os seus contrários – e é isso que Deus guarda e coloca à prova”[2]. O coração é o “lugar” onde se concentra todo o nosso ser, é a parte interior de nós mesmos onde se originam as nossas decisões últimas e onde são conservadas as nossas experiências decisivas. O meu coração é onde eu sou mais eu mesmo, com o meu nome e a minha história pessoal[3]. O coração é a fonte de tudo o que o ser humano é, decide ser ou fazer. Se o coração é bom, tudo é bom nele; se o coração é mau, tudo nele é mau: “É do coração dos homens que saem todas as más intenções: fornicações, furtos, homicídios, adultérios…” (Mc 7,21).

É no seu coração que o homem deve se abrir a Deus[4].

É o coração que sente o temor de Deus e é sobretudo nele que mora a fidelidade a Javé[5]. Na Bíblia o coração reúne em si toda a plenitude da vida espiritual que deve abraçar o homem inteiro, em todas as suas atividades[6].

A Bíblia quando nos fala do lado aberto de Jesus pela lança do soldado, abre o caminho para o acesso ao coração de Jesus.

Falar do Coração de Jesus é falar de Cristo que mostra o Coração. Esse gesto de mostrar o coração não significa só e simplesmente o centro da pessoa, mas representa a atitude que podemos chamar de “interioridade cordial aberta”, “interioridade comunicada”. E comunicada de maneira que, ao mesmo tempo, incita à realização plena e à resposta perfeita a esse amor comunicado[7].

Creio, portanto, que o melhor modo de comemorar o Sagrado Coração seja procurarmos reproduzir na nossa vida essa atitude oblativa de entrega amorosa do nosso coração.

Este mês dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, é uma oportunidade para mergulharmos mais profundamente na experiência do Amor de Deus por nós manifestado em Jesus Cristo. Contemplando as riquezas do Coração do Senhor, que ele mova o nosso coração a bater no seu mesmo ritmo filial e compassivo, em tempos duros como os que vivemos.

 

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] T. SPIDLIK, Il cuore e lo spirito. La dottrina spirituale di Teofanie il Recluso.  Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2004, 97.

[2] A. LEFÈVRE, “Cor et cordis affectus”, in Dictionnaire de Spiritualité II/2, coll. 2280.

[3] J. LESCRAUWAET, Le coeur transpercé du Christ: symbole de Dieu-avec-nous, Cor novum 3 (1985) 40.

[4] Sal 34,29; Dn 10,12.

[5] Cf. 1Re 11,3-4.

[6] Cf. A. LEFÈVRE, « Cor et cordis affectus. Usage biblique », in Dictionnaire de Spiritualité II/2, coll. 2278. Também GS 19 fala desse centro da pessoa humana como base primária da inalienável dignidade da pessoa humana.

[7] L. María MENDIZÁBAL, “El corazón de Jesús, centro de lo divino y humano en Cristo”, em: Pablo Cervera Barranco (org.), Enciclopedia temática del corazón de Cristo. Madrid: BAC 2017,  658.

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