Geraldo De Mori SJ
“[…] enchei a terra e dominai-a” (Gn 1,28).
“O Senhor Deus tomou o homem e o estabeleceu no jardim de Éden para cultivar o solo e o guardar” (Gn 2,15).
“É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias de tua vida. […] No suor do teu rosto comerás o pão” (Gn 3,17. 19)
O dia Primeiro de Maio, celebrado em quase todo o mundo como “dia do trabalho” ou “dia do trabalhador”, remete à greve organizada em Chicago, em 1886, marcada por forte repressão e pela morte de dezenas dos que participaram nos protestos, com repercussões no mundo inteiro, levando à adoção dessa data como marco da causa operária. Durante todo o período em que o trabalho industrial foi o principal motor da produção de riquezas no mundo capitalista e comunista, essa data mobilizava milhões de trabalhadores/as às ruas, sendo fundamental em muitas lutas por melhores condições de trabalho e salário. Com as desregulações da era da globalização e a subsequente uberização da economia e do trabalho, ocorrida, sobretudo nas últimas décadas, a força simbólica do Primeiro de Maio parece ter perdido muito de seu impacto, embora, mais do que nunca, os que dependem do “fruto do suor e do trabalho” necessitem se unir ao redor de “sonhos e lutas comuns” que assegurem o “bem viver” para si e para suas famílias, num modelo econômico que parece ter se tornado mais selvagem do que aquele que, no final do século XIX, deu origem ao Primeiro de Maio.
De muitas formas a Igreja buscou estar presente junto às grandes mudanças que deram origem ao mundo do trabalho industrial na época moderna. Para contrapor-se à influência marxista, promoveu várias iniciativas reunindo trabalhadores/as católicos/as, como os ciclos operários, os sindicatos de inspiração católica, sobretudo a partir da encíclica Rerum novarum, de Leão XIII, a Ação Católica, com seu ramo operário, entre adultos e jovens. No âmbito mais estritamente religioso, a criação da festa de são José Operário, celebrada no mesmo dia Primeiro de Maio, além da outorga de títulos cristológicos ligados ao mundo operário, como o de Cristo Operário, além do Jesus identificado com cada “ofício”, já presente no imaginário eclesial desde a Idade Média.
Do ponto de vista da reflexão teológica, um dos aspectos explorados foi o da ética, que compõe, em parte, a Doutrina Social da Igreja, com orientações importantes para pensar o mundo do trabalho, as relações entre empregador e empregado, as questões do capital e do trabalho, a justiça nas relações trabalhistas etc. Boa parte dessa reflexão ainda permeia os ensinamentos de moral social das faculdades de teologia e as orientações de caráter mais pastoral a serem assumidas pela Igreja. Além dessa perspectiva, de caráter mais ético-teológico, a própria noção de trabalho foi aprofundada, com importantes contribuições no campo específico da reflexão teológica.
Três elementos dessa reflexão, presentes nos primeiros capítulos do livro do Gênesis, foram postos em evidência: o primeiro, presente na sentença divina após a transgressão do Jardim do Éden, associa trabalho a castigo, através dos termos “fadiga” e “suor” (Gn 3,17. 19). O segundo, presente no primeiro relato da criação, associa trabalho a “domínio” (Gn 1, 28), e o terceiro, presente no segundo relato da criação, associa trabalho a “cultivo” e “guarda” ou cuidado (Gn 2,15). Talvez, para repensar hoje a questão do trabalho e do/a trabalhador/a, seja importante revisitar esses três sentidos.
Muitas pessoas identificam, na sentença divina a Adão, que fala de “fadiga”, para adquirir o alimento cotidiano, e de “suor do rosto”, para comer o pão (Gn 3,17. 19), uma espécie de maldição associada ao trabalho. É interessante, porém, notar, que a única sentença de maldição é dada à serpente e não ao casal transgressor. Portanto, essa identificação não corresponde à teologia subjacente ao texto. Na verdade, os termos fadiga e suor recolhem o que é a experiência cotidiana do esforço dispensado nas diversas atividades pelas quais o ser humano realiza seu trabalho. Mais que maldição, o trabalho tem a ver, primeiro, com o significado veiculado pelo segundo elemento posto em evidência no primeiro capítulo do Gênesis: o do “domínio”. Trata-se, com efeito, de um esforço dispendido pelo ser humano para criar ou transformar algo. Por isso, a ordem de domínio é antecedida pela bênção, que é primeiro associada ao “ser fecundos e prolíficos”, ou seja, à geração de uma nova vida. Na verdade, o próprio ato divino, ao criar tudo, segundo Gn 1,1-2,4a, ou ao modelar o ser humano e ao plantar para ele um jardim, segundo Gn 2,4b-24, é identificado com trabalho. A criação, a modelação, o plantio de um jardim são atividades laboriosas às quais o Criador associa aquele ao qual concede uma bênção que implica um domínio, diferente de submissão autoritária, como foi compreendida por muitos que veem o trabalho apenas como meio para tirar da natureza o máximo benefício. Nesse sentido, o terceiro elemento, que associa trabalho a cultivo e guarda, é uma boa interpretação de como entender o domínio. Não como submissão despótica e autoritária, que não leva em conta que o mundo deve ser jardim.
Trabalhar então é sim dispensar um esforço, muitas vezes penoso, mas associado ao ato mesmo de criar, visto como domínio que é cultivo e guarda/cuidado. Certamente para milhões de pessoas essa não é sua experiência do trabalho, seja porque, na maior parte do tempo fazem coisas com as quais não se identificam, seja porque lhes falta até a oportunidade de oferecer o que tem de melhor, em termos de criatividade, para que o jardim do mundo possa ter mais plantas belas para serem contempladas e mais frutos apetitosos para serem saboreados. Nesse tempo pós-pandêmico, as experiências de outras formas de trabalho, como o que foi viabilizado pelas tecnologias da informação, mas, sobretudo, a ausência do trabalho ou a perda do emprego, criaram muitas novas perguntas que necessitam de “olhos para ver” e “ouvidos para escutar” e discernir os novos caminhos que o “domínio” do mundo deverá tomar, para que, a fadiga e o suor a serem dispensados tragam de fato para a mesa e para a vida o necessário para sobreviver.
E, enquanto o mundo pós-pandêmico vai se gestando, os efeitos da pandemia vão sendo vistos e sentidos por aqueles/as que estão sempre do lado mais fraco em que a corda é puxada. Além disso, o retorno da inflação e o aumento do custo de produtos básicos penalizam sobretudo trabalhadores/as que vivem de salário mínimo, pensão ou de “bicos” que vão fazendo para tentar driblar a fome, que voltou com seu séquito terrível de consequências sobre o conjunto da sociedade. Após mais de dois anos de pandemia, que sugou quase todas as energias da maior parte da população, nos quais, porém, também surgiram experiências bonitas de solidariedade, o novo desafio é, para muitos, quase que intransponível. Nesse sentido, comemorar o Primeiro de Maio, sobretudo para quem se diz cristão/ã, é buscar forças para seguir acreditando que, dos pequenos gestos de solidariedade poderão ser gestados pequenos caminhos que tornem a vida não apenas “fadiga e suor”, mas caminho de “cultivo, guarda e domínio”.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE