Geraldo De Mori SJ
“Soprou sobre eles e disse-lhes: recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
O ciclo pascal do tempo litúrgico de boa parte das igrejas cristãs termina com a festa de Pentecostes, celebrada exatamente 50 dias depois da páscoa. A origem dessa festa remonta ao judaísmo e à festa da shavuot (= sete), conhecida como festa das colheitas ou das primícias, celebrada sete semanas depois da Páscoa judaica, na qual os agricultores ofereciam para Deus os primeiros frutos de suas colheitas. Segundo a cronologia de Lucas, após a morte de Jesus, os discípulos deveriam permanecer em Jerusalém até serem “revestidos da força do alto” (Lc 24,49; At 1,4-5). Isso se deu, segundo a narrativa dos Atos dos Apóstolos, no dia de Pentecostes (At 2). É interessante notar que João tem outra cronologia, pois, para ele, Jesus dá o Espírito no primeiro dia da semana, ou seja, no dia mesmo em que ressuscitou (Jo 20,22). Do ponto de vista da cronologia e da teologia, trata-se de duas leituras diferentes, embora complementares.
De fato, no Novo Testamento vários autores desenvolvem bem a pneumatologia (= doutrina do Espírito Santo), pois o dom do Espírito era o sinal escatológico (= último e definitivo) da chegada do messias, ou seja, da realização plena da promessa divina. Todos os evangelhos, por exemplo, associam a unção messiânica de Jesus, no batismo, ao Espírito. Toda sua vida e missão são ligadas ao Espírito. Em Marcos, Mateus e Lucas, Jesus é “levado ao deserto” pelo Espírito, onde foi tentado (Mc 1,12; Mt 4,1). Mateus e Lucas associam a geração de Jesus ao Espírito (Mt 1,20; Lc 1,35). Lucas afirma que é pela força do Espírito que ele ensinava, e o próprio Jesus, ao ler o livro de Isaías na sinagoga de Nazaré, afirma que o “Espírito do Senhor estava sobre ele” (Lc 4,14, 18-19). Para Paulo, foi o Espírito que ressuscitou Jesus dentre os mortos (Rm 8,11) e foi segundo o Espírito de santidade, que o Cristo foi “constituído Filho de Deus com poder” (Rm 1,4). Além de ser gerado, ungido, movido, ressuscitado e constituído Filho pelo Espírito, o Ressuscitado, segundo o evangelho de João, é aquele que dá o Espírito (Jo 20,22), que é um Espírito de perdão dos pecados. O mesmo evangelista discorre sobre o “Paráclito”, que “convencerá o mundo “a respeito do pecado, da justiça e do julgamento” (Jo 16,8), guiando os discípulos ao conhecimento de “toda a verdade” (Jo 16,13), recordando-lhes tudo o que Jesus ensinou (Jo 14,26), ajudando-os a darem testemunho dele (Jo 15,26).
A relação de Jesus com o Espírito é a que é comunicada a seus discípulos em Pentecostes. É ela que realiza em cada pessoa que crê o que o Espírito realizou em Jesus desde o momento de sua concepção até o momento de sua glorificação: a filiação. Na verdade, o próprio ato de fé só é possível no Espírito, como tão bem o expressa Paulo aos Coríntios (1Cor 12,3). É o Espírito que torna possível “nascer de novo” ou “nascer do alto”, como Jesus explica a Nicodemos (Jo 3,1-15). Nesse sentido, é o Espírito que gera a Igreja, dando-lhe vitalidade e dinamicidade, como relata Lucas nos Atos dos Apóstolos, após ter mostrado, no evangelho, o papel do Espírito na geração e na missão de Jesus. A modelagem da forma ou da figura do Filho/Cristo em cada discípulo/a é o caminho que a Igreja propõe nos vários percursos de evangelização. Mais que aderir a doutrinas, trata-se de acolher a proposta de plenitude de humanidade vivida por Jesus. Isso se dá, certamente, pela escuta e acolhida de sua palavra, de seu modo de ser e pensar, de seu jeito de relacionar com Deus, de se ocupar das coisas do “Pai”, através do serviço a seus “preferidos”: os pobres, os vulneráveis, os desprezados por vários tipos de preconceitos.
A acolhida do jeito de ser de Jesus, que leva à aquisição de seu modo de ver o mundo e nele agir, se dá numa comunidade de fé, a Igreja. Por isso, não só Jesus quis formar uma comunidade, mas a enviou para que realizasse o mesmo que ele. A narrativa de Pentecostes, tal qual é apresentada por Lucas, mostra como o Espírito agiu nessa comunidade, levando-a a espalhar a boa nova de Jesus até os confins da terra (At 1,8). A celebração litúrgica desta festa, concluindo o ciclo pascal, é uma recordação de que a Igreja só é o que é e só realiza sua missão movida pelo Espírito. Em geral, nas leituras que foram feitas do Espírito Santo na história do cristianismo, ora se insistiu em seu dinamismo, que abre novos caminhos à proclamação da boa nova, move homens e mulheres a realizarem criativamente em cada tempo e lugar os mesmos gestos de Jesus, ora se insistiu em sua função de criar comunhão, unindo o que estava disperso, reconciliando o que estava separado. Nesse segundo sentido, Paulo advertia os coríntios a valorizar os diversos dons do Espírito sem, no entanto, atentar contra a unidade do corpo eclesial (1Cor 12,1-31), e João mostra Jesus rezando para que os discípulos permanecessem unidos (Jo 17,21-23). As ameaças a essa unidade foram recorrentes na história da Igreja. Com o diálogo ecumênico, as várias confissões cristãs passaram a rezar mais insistentemente pela “unidade dos cristãos”. Nos países do Norte global, isso se dá na semana que antecede a conversão de Paulo (25 de janeiro). No Brasil, os cristãos das diversas confissões rezam pela unidade na semana que antecede a festa de Pentecostes.
Nos últimos anos o Papa Francisco tem convidado a Igreja ao “desborde” do Espírito. O termo “desborde”, que em português pode ser traduzido por “transbordo”, evoca o caráter surpreendente e transbordante do Espírito. Já Paulo dizia que onde está o Espírito do Senhor aí está a liberdade (2Cor 3,17), ou seja, aí está algo que é da ordem de um dinamismo tal que ninguém pode interromper. O “desborde” ao qual o Papa tem convidado a Igreja tem sempre a ver com o que nela tem se tornado “muro” e não “ponte”, ou seja, com discussões estéreis sobre temas certamente polêmicos, mas que precisariam da “liberdade” dada pelo Espírito, para poder fazer avançar o que está em questão. Um desses temas, em pauta na Igreja hoje, é o da sinodalidade. O próprio Papa tem insistido que a sinodalidade é o caminho da Igreja no século XXI. Porém, quando se trata de fazer caminho juntos, é preciso, primeiro, como ele diz, colocar-se no caminho, abrir-se ao diálogo com o outro. Somente da escuta mútua surgirá a coragem do “desborde”, seja para questões do cotidiano da caminhada pastoral, seja para questões mais complexas. Num mundo polarizado é difícil renunciar à própria opinião, acolher o que o outro pensa, deixar-se questionar por aquilo que traz como diferente do próprio.
O Brasil viveu na última semana episódios que apontam para o que Hanna Arendt chamava perda do sentido da humanidade do outro: a chacina, no dia 25/05/02022, de 23 pessoas, na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, “aplaudida” por alguns como “cumprimento” do dever da polícia; a morte, por asfixia, de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, em 26/05/2022, por agentes da polícia rodoviária federal, também ela “justificada” por autoridades do país. No país em que mais crescem as diversas confissões e manifestações pentecostais, talvez, o “desborde” do Espírito deveria se traduzir em um grande grito de “basta!”, cuja tradução, no cotidiano, poderia ser o deixar-se de novo interpelar por aquilo que cada um é e traz para formar a diversidade da própria sociedade. Nesse processo, as igrejas cristãs, além da oração para que o Senhor infunda nelas o desejo de que “todos sejam um”, devem pedir que as mova a trabalhar para que cada vida humana seja respeitada, sobretudo as vidas dos mais pobres e vulneráveis, tão ameaçadas no atual momento.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE