Marília Murta de Almeida
O poeta Manoel de Barros, mestre das coisas mínimas, escreveu um livro chamado Memórias inventadas. Basta apenas esse título para nos pormos a pensar na insinuação do poeta. A mistura entre ficção e realidade ou, se quisermos ousar mais, entre mentira e verdade, se torna nele patente. Nossas memórias são nossas invenções. Mais ainda nossas memórias da infância. E, ao mesmo tempo, nossas invenções são nossas verdades. A memória inventada diz do que somos e de como agora nos entendemos.
Iluminada por essa proposta poética, que acatamos não sem um sorriso – de ironia ou apenas fruto da incerteza sobre o que dizemos de nós mesmos – passo a inventar uma memória. Quando criança, fui a certa época fascinada pela imagem da fuga, ilustrada por um livro que contava a história de um urso criança que fugia de casa com uma trouxinha de roupas amarrada em uma vara que ele apoiava no ombro. Depois de pedir insistentemente, minha mãe me atendeu e fez para mim uma jardineira com a imagem do urso fujão aplicada em tecido. Meu irmão mais velho, apaixonado por fotografia e por mim, me atendeu também e fez para mim uma trouxinha igual à do urso. Vesti então a jardineira, peguei minha trouxa e saímos para fazer uma sessão de fotos que simulava minha fuga. Olhando agora, da distância do tempo, penso: eu me retirava.
Retirante, seguia.
Agora, neste instante em que escrevo, participo de um retiro. Descanso junto a um grupo de amigas em busca de Deus. Nos retiramos em silêncio para melhor encontrar a fresta por onde falar com Deus. A imagem do retirante me invade juntamente com a memória daquela sessão de fotos. Não houvesse as fotos, eu de nada me lembraria. Não houvesse as histórias que contam sobre nós, nada saberíamos de nossos primeiros anos. Mas, com as histórias e as fotos, vejo em mim, já naquele tempo sem memória, uma retirante.
Retirante foi também Severino, personagem imortalizado por João Cabral de Melo Neto. Retirante que caminhava ao longo do Rio Capibaribe à procura do mar e da cidade à beira-mar onde talvez teria a chance de uma vida melhor. Encontrou pelo caminho a morte e a miséria que já conhecia em sua terra. No final, encontrou a esperança na face de uma criança recém-nascida. Ou melhor, do que disse a ele o pai da criança sobre a força do nascimento. O poema termina sem que saibamos a repercussão desse acontecimento em Severino.
Morte e vida severina é, segundo seu autor, um “auto de Natal pernambucano”. Severino, em busca da vida melhor, com trabalho e dignidade, encontra tão somente uma promessa em forma de esperança: a afirmação de que a vida sempre se renova e de que isso é motivo suficiente para manter em nós o desejo de viver. O menino que nasce em alusão ao outro menino que um dia nasceu em Belém é portador dessa esperança que quer se fazer também a esperança do retirante que, sem saber o que vai encontrar, se retira da vida que tem, à procura de outra melhor. À procura de uma outra vida.
Sem nos desviar da denúncia e do convite à luta política contidos na saga de Severino, que nos exigem compromisso no combate às desigualdades e injustiças de nosso tecido social, é patente também no texto do poeta a esperança que alude ao milagre do nascimento.
Clarice Lispector, em página surpreendente de A maçã no escuro, alude ao nascimento de um menino em um local parecido com um curral. Se referindo a Martim, o personagem que limpava o curral com nojo do que via lá, diz que ele parece ter entendido, “a contragosto”, aquele tal nascimento. Todavia, diz também que ele não tinha o necessário “avanço espiritual” para entendê-lo plenamente.
O nascimento do espírito na carne é o que para cada um de nós pode significar o segundo nascimento a que nos chama Jesus de Nazaré. Nascimento que é a entrega ao mistério que nos habita e que nos permite o encontro da outra vida. Uma outra vida a ser vivida aqui mesmo, neste mundo em que nascemos, nesta terra em que pisamos, neste tempo que compartilhamos.
É assim então que me vejo agora: retirante na vida. Passo a passo em retirada em busca da vida outra em que a fonte de água viva nos nutre para que nos empenhemos na luta por esta vida mesma. Ao contrário do que provavelmente supunha minha imaginação de criança, procurar pela outra vida não se faz pela fuga, pois por mais que andemos continuamos a pisar o chão da mesma terra. Se faz antes pela retirada interior geradora de um movimento que possibilita a visão da vida comum sob a luz do menino que veio nos ensinar a viver.
E a vida é esta mesma, a vida comum em que amamos e lutamos pela justiça e pelo bem para todos.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE