Washington Paranhos SJ
DESIDERIO DESIDERAVI
O título da carta apostólica do Papa Francisco, publicada na quarta-feira, 29 de Junho, Solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo, é evocativo. “Desiderio desideravi” é de fato o início de uma fala de Cristo antes da Última Ceia: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer” (Lc 22,15). Segue-se uma longa meditação sobre a liturgia, com ênfase na formação, como o próprio título do texto indica. Mas, um ano após o Motu proprio Traditionis custodes, o sucessor de Pedro quer, acima de tudo, reiterar a necessidade de trazer a paz sobre as questões litúrgicas.
Papa Francisco com a Carta Apostólica Desiderio Desideravi sobre a formação litúrgica do povo de Deus, nos oferece um documento de profunda sensibilidade pastoral, teológica e espiritual. Basta olhar as 24 notas citadas ao longo do texto para entender o estilo. O documento mais citado é o Missal Romano, depois Romano Guardini e, finalmente, os grandes Padres da Igreja latina: Agostinho, Leão Magno, Irineu de Lião. Como muitos desejam, o Papa nos introduz no “uso” da liturgia, a única forma de evitar abusos.
A Carta segue o Motu proprio Traditionis custodes e pretende oferecer algumas reflexões para contemplar a beleza e a verdade das celebrações cristãs.
A liturgia é o “hoje” da história da salvação, cujo centro é a Páscoa da morte e da ressurreição. Na Eucaristia e em todos os sacramentos nos é garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pelo poder de sua Páscoa. Nosso primeiro encontro com sua Páscoa é o nosso batismo: em perfeita continuidade com a encarnação, nos é dada a possibilidade, em virtude da presença e ação do Espírito, de morrer e ressuscitar em Cristo. Sem incorporação a Cristo não há possibilidade de viver a plenitude do culto a Deus.
A liturgia é o antídoto para o veneno do mundanismo espiritual. A liturgia toma-nos pela mão, juntos, em assembleia, para nos conduzir ao mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. A liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético: é o dom pascal do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida.
A redescoberta contínua da beleza da liturgia não é a busca de um esteticismo ritual. O encontro com Deus não é o resultado de uma individual busca interior d’Ele, mas é um evento doado. A beleza, como a verdade, sempre gera espanto e quando se refere ao mistério de Deus, leva à adoração.
A questão fundamental é como recuperar a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica. O homem moderno perdeu a capacidade de lidar com a ação simbólica que é característica essencial do ato litúrgico. Seria banal ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual. O problema é sobretudo eclesiológico. É surpreendente que um católico não acolha a reforma litúrgica que expressa a realidade da liturgia em íntima conexão com a visão da Igreja descrita pela Lumen Gentium. A não aceitação, bem como uma compreensão superficial, tornam urgente uma formação litúrgica séria e vital. Como dizia Guardini, sem formação litúrgica “as reformas no rito e no texto não ajudam muito”.
O Papa diz que dois aspectos devem ser distinguidos: a formação para a liturgia e a formação pela liturgia. O primeiro é funcional em relação ao segundo, que é essencial. Lembremos sempre que é a Igreja, o Corpo de Cristo, o sujeito celebrante, não apenas o sacerdote. Uma abordagem de sabedoria litúrgica para a formação teológica nos seminários certamente teria efeitos positivos também na ação pastoral.
Segundo Guardini, a primeira tarefa da formação litúrgica é fazer com que “o homem volte a ser capaz de símbolos”. A tarefa não é fácil porque o homem moderno se tornou analfabeto, não sabe mais ler símbolos. Cada símbolo é poderoso e frágil: se não for respeitado, se não for tratado pelo que é, quebra, perde a força, torna-se insignificante. A leitura simbólica não é um fato de conhecimento mental, mas uma experiência vital.
Uma maneira de crescer na compreensão vital dos símbolos da liturgia é cuidar da arte de celebrar. O rito é em si mesmo uma norma e a norma nunca é um fim em si mesma, mas sempre a serviço da realidade mais elevada que ela quer preservar. Como toda arte, requer conhecimentos diversos: compreensão do dinamismo que a liturgia descreve para não cair em exteriorismos e rubricismos; saber como o Espírito age em cada celebração, para não cair no subjetivismo; conhecer a dinâmica da linguagem simbólica.
Há muitas maneiras pelas quais a assembleia participa da celebração. Não se trata de ter que seguir uma etiqueta litúrgica: é antes uma “disciplina” – no sentido usado por Guardini – que, se observada com autenticidade, nos forma. Entre os gestos rituais, o silêncio litúrgico ocupa um lugar importante: é o símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda a ação celebrativa. Muito poderia ser dito sobre a importância e a delicadeza de presidir: presidir a Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus. Quem preside não se senta em um trono; não rouba a centralidade do altar; não pode presumir para si mesmo o ministério que lhe foi confiado; ele não pode dizer “tomai, todos e comei: isto é o meu corpo entregue por vós”, e não viver o mesmo desejo de oferecer seu próprio corpo, sua própria vida pelas pessoas que lhe foram confiadas.
Somos chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais expostos nos primeiros números da Sacrsanctum Concilium. Não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram necessidade de reformar, aprovando sob a orientação do Espírito e segundo sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma.
Washington Paranhos SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE