Geraldo De Mori SJ
“Bendita és tu entre as mulheres…” (Lc 1,42).
Um dos maiores escritores sobre Maria no período medieval, São Bernardo de Claraval, teria afirmado, segundo os especialistas em mariologia, que nunca é demais falar sobre ela. Esse sentimento é compartilhado pela liturgia, tanto no mundo católico quanto ortodoxo, como mostram as muitas festas a ela dedicadas no calendário litúrgico ou as que a associam ao mistério de seu Filho, como no Natal, ou, enfim, o dia votivo a ela dedicado a cada semana (sábado). A piedade popular é igualmente rica de expressões de carinho e devoção para com a Mãe de Jesus, sem contar a oração que, provavelmente, é a mais repetida na boca da maioria dos fiéis católicos, a “Ave Maria”.
Dentre as comemorações marianas de agosto, duas chamam a atenção, a da Assunção de Maria (15) e a de Nossa Senhora Rainha (22). Boa parte das devoções à mãe de Jesus são relacionadas à sua maternidade ou à sua integridade. O primeiro grande dogma mariano, por exemplo, o da Theotokos (Maria Mãe de Deus), de grande relevância cristológica, é centrado na maternidade, enquanto o de sua virgindade e o de sua imaculada concepção, apontam para sua integridade. De fato, as figuras de Maria, mãe e virgem, povoam o imaginário de grande parte dos fiéis católicos e ortodoxos. Algumas abordagens críticas da teologia feminista, elaboradas nas últimas décadas, têm criticado esse tipo de redução de Maria às figuras da maternidade e da virgindade, mostrando seu reducionismo e sua relação ao imaginário que dá suporte ideológico a uma visão da mulher unicamente definida pelo ideal de tipo machista ou patriarcal, que não dá conta de todas as evoluções vividas pela sociedade e pela cultura nos tempos atuais. É interessante refletir sobre esse tipo de crítica e, ao mesmo tempo, voltar-se para as figuras evocadas nas festas marianas de agosto: as da Assunção e Maria Rainha.
A sociedade tradicional, na qual nasceu e se desenvolveu o cristianismo durante quase dois milênios, era em grande parte determinada pelo imaginário do mundo agrário, para o qual o papel da mulher era definido ao redor da maternidade, necessária para a continuidade da espécie numa época de grande mortalidade infantil. Nesse contexto, esse papel se desenvolvia na casa, da qual ela devia cuidar, além de ocupar-se da educação dos filhos. Ao homem competia o trabalho no campo, as relações sociais e o exercício do poder político nas diversas instâncias da sociedade. O poder masculino sobre a mulher se exercia frente à esposa, que lhe devia submissão, e às filhas, que eram preparadas para serem esposas e mães, devendo, por isso, “guardar-se” para seus futuros maridos, o que justifica a grande valorização da virgindade. Os dogmas marianos que valorizam as figuras de Maria mãe e virgem são tributários desse modelo cultural.
De fato, o mundo judaico, do qual nasceu o cristianismo, reproduzia em grande parte o imaginário da maioria das sociedades antigas, marcadas pelo modo de produção agrário, o que o levou a conferir sobretudo ao homem o exercício do poder em todas as esferas da sociedade, inclusive na religiosa, que, enquanto contou com o templo, admitia apenas homens para oficiar o culto, e nas sinagogas, apenas permitia a homens o acesso à leitura da Palavra e sua interpretação. Apesar de Jesus ter rompido com o imaginário de seu tempo, admitindo mulheres entre seus seguidores, e de a igreja primitiva, contar com mulheres no serviço missionário e na organização eclesial, como atesta Paulo em suas cartas e o relato dos Atos dos Apóstolos, o cristianismo que se desenvolveu ao longo dos séculos manteve o imaginário tradicional com relação às mulheres e, no caso das devoções marianas, privilegiou as que a identificavam como mãe e virgem. Não se pode negar o valor antropológico da maternidade na vida humana, tão bem representado no dogma e na devoção à figura de Maria como mãe, e não é isso que propõem as leituras feministas nas últimas décadas. Suas críticas ao patriarcalismo recolhem as mudanças trazidas pela urbanização e pelo advento da subjetividade, que fizeram com que o papel das mulheres não possa mais ser associado apenas à casa, na qual elas exerciam o papel de mães e esposas, mas é definido pelo mundo do trabalho, no qual exercem lideranças em movimentos sociais, na política e nos processos culturais. Também nas comunidades eclesiais a liderança feminina tem se destacado.
A piedade popular, profundamente inspirada pela fé cristológica, já havia percebido que a figura de Maria não podia reduzir-se apenas aos papeis de mãe e virgem. Desde a antiguidade, como atesta a antiga devoção à “dormição” da mãe de Jesus, traduzida no mundo latino ao redor da devoção à sua “assunção”, sua excelência discipular é valorizada e vista como exemplar. Nesse sentido, é emblemática a contraposição entre maternidade e discipulado, atestada em Lc 11,28, que faz uma mulher exaltar a maternidade (“bem-aventurado o ventre que te gerou e os seios que te amamentaram”) e Jesus dar a primazia ao discipulado (“bem-aventurados, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam”). Nesse sentido, o que é o dogma da Assunção senão a afirmação de que a vida de Maria correspondeu àquilo que é a vocação humana levada à sua plenitude escatológica (= ser totalmente acolhida em Deus na ressurreição), iniciada por Jesus, e à qual ela correspondeu, através de seu discipulado?
Algo parecido se pode dizer da festa que está associada à assunção de Maria, a que a identifica como rainha. O imaginário da realeza é cheio de equívocos, sendo por isso muito criticado, sobretudo diante da simplicidade e da pobreza na qual viveu a Mãe de Jesus durante toda sua vida. O que subjaz, porém, a essa devoção, é uma afirmação também cristológica. Jesus inaugurou sua missão anunciando o advento, próximo, do reino de Deus, chamando todos à conversão e a acreditarem nessa boa notícia (Mc 1,15). O reinado que ele proclama próximo nada mais é que o “domínio” de Deus sobre sua criação, que se traduz em vida plena para todos e em salvação para “toda carne”. Trata-se, portanto, de uma realeza que é fonte de vida, salvação e plenitude. Associar a figura de Maria a essa realeza, mais que conferir-lhe um papel político de domínio sobre o mundo, é indicar que nela tudo está submetido ao Filho, como tão bem indica Paulo em 1Cor 15,28, ou seja, nela Deus já é tudo e ela é o ícone daquilo a que cada pessoa que acolhe o Evangelho de seu Filho é chamado a ser e a tornar-se, fazendo advir o reino.
Outra devoção mariana importante, celebrada em 8 de dezembro, a da Imaculada conceição, nada mais é do que a tradução de que a plenitude alcançada por Maria, venerada em sua Assunção e na afirmação de que é Rainha, concerne sua origem. Na verdade, segundo Ef 1,4, “desde antes da fundação do mundo, Deus nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis diante dele, no amor”. Essa afirmação indica que a vocação humana, no desígnio eterno de Deus, é à santidade e à integridade. A Igreja reconhece que em Maria esse desígnio, atestado por sua vida discipular, sua acolhida na plenitude do Filho, foi vivida desde o início de sua existência na santidade e na justiça.
Celebrar as festas marianas associadas à plenitude e integridade da mãe de Jesus é recordar que todos os que se tornam discípulos do reino de seu Filho podem chegar à mesma plenitude e integridade, que o humano tem sentido e vale a pena ser vivido, que as primícias da nova criação, iniciada em seu Filho, nela são reconhecidas e celebradas.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE