Geraldo De Mori SJ
“É preciso crer para compreender e compreender para crer” (S. Agostinho, Sermão 43).
Iniciou-se, no dia 16 de agosto, a campanha eleitoral para o executivo e o legislativo nacional e estadual. Fortemente polarizada, a sociedade brasileira deve mais uma vez escolher os representantes que definirão os destinos do país e de cada unidade da federação nos próximos quatro anos. Política, como futebol e religião, segundo a máxima do ditado popular, “não se discute”. Essa máxima recolhe uma característica da cultura brasileira, que é a de evitar conflitos, como tão bem demonstrou Sérgio Buarque de Holanda, com sua tese da cordialidade como típica do povo brasileiro. Esses três âmbitos da existência envolvem efetivamente paixões arraigadas do ser humano, que produzem opiniões controversas, que demandam o recurso à razão e à argumentação.
O âmbito específico da política, que, no sentido mais original do termo diz respeito aos assuntos da polis (= cidade), é constitutivo de toda sociedade. De fato, para enfrentar as adversidades do ambiente e as ameaças de outros grupos humanos tidos como rivais, ou para realizar projetos comuns que beneficiam todo o grupo e estabelecer relações com grupos tidos como aliados, as organizações sociais surgidas ao longo do tempo sempre necessitaram organizar-se politicamente, seja no sistema dos clãs e etnias, seja no das diversas formas de organizações que deram origem aos atuais estados nacionais. Em geral, à política enquanto tal é atribuída a função de planejar, organizar e gerir o “bem comum”. Ela não implica apenas os que exercem cargos ou funções profissionais nesse âmbito, mas concerne o conjunto da população de uma determinada nação. Aristóteles, um dos principais filósofos da antiguidade grega, captou bem isso em uma de suas definições do ser humano como animal político.
Na bíblia, a questão política recebe abordagens diferenciadas. As grandes nações que dominavam a política internacional nas diferentes épocas em que o texto bíblico foi escrito são evocadas nos textos sagrados, algumas com juízos bastante severos, por conta do modo como exerciam seu domínio sobre o mundo. É o caso do Egito, da Assíria, da Babilônia, da Grécia. A Pérsia, pelo fato de ter permitido a volta dos exilados e a reconstrução do templo, é vista com simpatia. Enquanto nação, Israel também teve uma organização política, exercida pelos juízes após os eventos relatados no Êxodo, e depois, por Saul, seguida pela dinastia de Davi, que, no reino do Sul, durou até o exílio na Babilônia. Em geral, com exceção de Davi, Salomão e Josias, a maioria dos reis de Israel foram duramente criticados pelos profetas, por não serem fiéis à aliança, levando com eles o povo à mesma atitude. Os reis das grandes potências dominadoras do entorno no qual viveu o povo eleito também são duramente criticados pela pregação profética. Isso não significa que a política e os políticos em geral sejam maus. O que os profetas condenavam era a forma como era exercido o poder, ora como identificação de quem o exercia com a própria divindade, levando consigo o povo à idolatria, ora como desvio do direito e da justiça, levando ao esquecimento e menosprezo dos pobres, viúvas e órfãos.
Os relatos evangélicos e os dos textos das primeiras comunidades cristãs foram escritos na época em que o domínio de grande parte do mundo estava nas mãos dos romanos. Jesus se pronuncia poucas vezes sobre a situação política de seu tempo. Numa ocasião, quando queriam pegá-lo numa armadilha com a pergunta sobre o imposto pago ao imperador, ele apresenta uma de suas máximas lapidares: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Lc 20,25). Muitos pensam que essa afirmação demonstre desprezo com relação à política, o que seguramente não é o caso, pois o coração da mensagem de Jesus é um apelo à conversão porque o “reino de Deus está próximo” (Mc 1,14-15). Muitos identificam o reino do qual fala Jesus a uma realidade transcendente, sem relação com o que se vive no mundo, mas esse termo recorda o período em que o povo caminhava no deserto e a época em que viveu na terra prometida sob o domínio dos juízes, tendo Deus como rei. Os sinais que Jesus realiza como antecipação desse reino são as curas, os exorcismos e a acolhida dos pecadores e excluídos de seu tempo. Tais sinais indicam que o reino acontece quando os mais vulneráveis e desprezados são objeto de um cuidado especial, que interrompe para eles toda situação de sofrimento, tormento ou exclusão. No fundo esses sinais mostram o que deveria ser o centro de toda ação política: oferecer condições de vida digna a todos.
A época retratada pelos textos da bíblia não fazia a distinção entre política e religião. Foi sobretudo a partir do século XVIII, com a Revolução Francesa e a Independência das colônias norte-americanas, que a separação entre Igreja e Estado se estabeleceu nas sociedades ocidentais, instaurando a laicidade do Estado. Como esses dois âmbitos da existência humana estão na origem das “paixões” sobre as quais o povo brasileiro não gosta de discutir, é importante, nesse tempo de campanha eleitoral, assegurar a não manipulação de uma por outra. A fé cristã pode certamente inspirar os discípulos e discípulas de Jesus a entrarem na política, a defenderem os candidatos de um partido ou de outro, desde que inspirados em princípios éticos que não sejam contrários aos princípios evangélicos. Ela não pode, porém, ser utilizada de forma ideológica para sustentar nenhum candidato ou partido, como tem se visto em discursos de vários políticos, muitas vezes utilizando-se de falsas notícias para enganar o/a eleitor/a.
A política é o lugar de paixões, mas, sobretudo, ela deve ser o lugar da argumentação. Infelizmente, muitos que se apresentam como candidatos, mais que argumentos apelam às paixões, tocando temas que as despertem e não discutindo as questões que verdadeiramente importam para a construção do bem comum. A religião, lugar da convicção, necessita ela também de argumentação, mas não para colocar-se ao serviço de uma ou outra proposta política. O argumento da fé é o que busca compreender aquilo que é o objeto da própria fé. Certamente a fé tem um olhar sobre o bem comum, como tão bem mostra a Doutrina Social da Igreja, mas esse olhar deve instruir as mentes e os corações de quem crê para que participem dos processos e debates em que as questões políticas são discutidas. Não se pode, por isso, querer manipular a fé colocando-a ao serviço de um projeto político. Como mostra toda a tradição profética do Antigo e do Novo Testamento, o olhar da fé é crítico de qualquer configuração social e política feita pelo ser humano. Não porque tal configuração seja má, mas porque o olhar da fé mantém sempre a “reserva escatológica”, ou seja, a distância crítica de qualquer esforço humano para construir o que é passageiro. Nesse sentido, a conversão exigida por Jesus para acolher o reino de Deus que está próximo, é um processo permanente, mesmo nas situações sociais e políticas que mais se esforçam por assegurar o direito e a justiça para os mais vulneráveis. Oxalá, nesse tempo de campanha eleitoral, para além da omissão em discutir sobre a política, porque ela desperta as paixões mais profundas de cada um, o povo brasileiro aproveite para crescer em cidadania, vivendo o exercício de uma argumentação que o prepare a votar bem.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE