Álvaro Mendonça Pimentel SJ
Desde cedo somos educados para ocultar a indignação. Perdemos assim a oportunidade de cultivar e de aprender a administrar o sadio sentimento que se levanta contra a ofensa ou a injustiça padecida. Com o tempo, criam-se obstáculos entre estados afetivos de mal-estar e a expressão madura destes estados, no encontro com o outro. Cala-se a dor e o coração “infecciona”. Na cultura brasileira, além disso, disseminaram-se o conformismo e a apatia diante de situações inaceitáveis. Do indivíduo à sociedade, há uma multiplicação de fatores que nos conduzem a um sério déficit de indignação.
Não há dúvida de que o autocontrole seja elemento importante para a realização pessoal, desde que não o identifiquemos ao rechaço dos próprios sentimentos. Dominar-se não significa – como parecem querer alguns – dessensibilizar-se. Não haveria o que dominar, ou melhor, o que orientar, se os sentimentos estivessem mortos. Ao contrário, somente ao acolhê-los aprendemos a lidar com eles. O contato com a ira santa, que se instala quando nos agridem, constitui caso exemplar desta acolhida fundamental a ser cultivada. Tal contato, aliás, estabelece etapa fundamental para o processo do perdão; enquanto a censura a toda ira termina por adoecer o indivíduo e a sociedade.
Iras censuradas conduzem ao desânimo. Se não há quem me escute ou, pior ainda, se minha queixa se vê amordaçada, a raiva e a humilhação reprimidas desintegram minha atenção e iniciativa. Prefiro então deixar-me mover pelas engrenagens do mundo, e trato com amargura e ironia os que defendem a justiça e sonham com outras formas e estilos de vida.
Além disso, iras censuradas, cedo ou tarde, atingem quem nada teve a ver com a agressão outrora sofrida. Quem não pôde expressar a própria dor e acusar seu ofensor, assemelha-se à fera acuada que se prepara para o revide final. Quantos abandonados, explorados, torturados, violentados, que ainda por cima foram silenciados, veem um dia explodir a própria ira! E a vingança se espalha sem alvo determinado sobre os mais próximos e desprotegidos.
A memória da agressão, do abandono, da exploração ou da tortura (com os sentimentos que a compõem) não pode ser eliminada. Censurada, ela não morre, mas passa a exercer pressão constante sobre o corpo, que adoece ou se dilacera no gesto descontrolado e destrutivo de si mesmo e dos outros. Se me considero como último ou lixo, se não tenho a minha causa defendida, se jamais expresso minha dor, identifico-me inconscientemente com o sofrimento que me domina. E um sofrimento sem nome, do qual não me diferencio, torna-se a tonalidade de todos os meus gestos e palavras.
Ao contrário, avanço na cura da minha memória (e sentimentos), quando alguém permite que eu expresse a minha queixa…; e se apresenta diante de mim qual interlocutor consistente, a ponto de suportar meu grito de dor, sem sentir-se agredido ou ameaçado diante do meu rosto desfigurado. A pequena criança precisa do adulto que a compreenda quando ela explode em cólera, e não a sufoque por sentir-se assim. O jovem que amadurece necessita do amigo experiente, do confessor ou do poeta que o ajudem a encontrar palavras para pelejar com o sofrimento da mudança, a fim de unificar-se. A pessoa torturada, ou violentada, ou constantemente agredida, necessita expressar sua indignação e encontrar, no meio em que vive, os lugares de escuta e de restabelecimento da própria integridade.
O contato consciente com o sentimento-padecimento que é a ira, contato que se realiza na expressão em palavras diante de interlocutor digno e consistente, equivale ao movimento de diferenciação frente à violência do mundo. Ele quebra o círculo vicioso das guerras, em que agressão gera revide, violência gera vingança. Nasce a “ira santa” ou, como prefiro chamá-la, a bela indignação. O processo do perdão exige que eu me retire do “círculo”, nomeie a minha dor, refaça minha integridade com a ajuda de outros. Este verdadeiro parto de indignação abre caminho para reencontrar quem me agrediu, sem deixar-me esmagar por ele ou tentar destruí-lo. E o que renasce é a possibilidade do diálogo, a fim de corrigir o mal e de criar nova oportunidade para a vida em comum. Ou ao menos, a capacidade de resistir e protestar, diante da violência insana que nos ameaça cada dia, sobretudo, quando ocupa o poder para dominar e não para servir.
Álvaro Mendonça Pimentel SJ é professor no departamento de Filosofia da FAJE