Pesquisar
Close this search box.

A coragem de fazer uso do próprio entendimento! (Immanuel Kant – 1724-1804)

advanced divider

Luiz Sureki, SJ

Há 300 anos, no dia 22 de abril de 1724, numa pequena cidade da Prússia Oriental chamada Königsberg, atualmente Калининград (Kaliningrad – Rússia), uma região entre a Polônia e a Lituânia, nascia Immanuel Kant.

Seria difícil acreditar em alguém que dissesse ter concluído o curso superior de filosofia e não ter ouvido falar de Kant. E se uma tal pessoa estivesse dizendo a verdade, então a nossa desconfiança recairia quase que imediatamente sobre a qualidade, pelo menos em termos históricos, do ensino filosófico ministrado naquele estabelecimento acadêmico.

Kant foi um verdadeiro divisor de águas no pensamento filosófico ocidental. Sua filosofia abrange os principais campos do saber: antropologia, metafísica, religião, epistemologia, cosmologia, lógica, ética, política, sociologia, educação, pedagogia, direito, estética. Para poder criticá-lo é preciso antes tê-lo entendido bem. E isso não é uma tarefa das mais simples. De fato, seria ingênuo pensar que se poderia compreender “Kant em 90 minutos!”. Por outro lado, também não seria recomendável desistir da tentativa de compreendê-lo sob a pretensa desculpa de ser ele um pensador difícil. A filosofia de Kant manifesta os limites da razão e, nesse sentido, apresenta uma coerência lógica interna impressionante.

As Obras Completas de Kant (Akademieausgabe) chegam a 29 volumes. Dentre as mais conhecidas do público acadêmico estão a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a Religião nos limites da simples Razão, a Crítica da Faculdade do Juízo, o opúsculo “O que é o Iluminismo/Esclarecimento?”. Deste último extraímos o título acima: “a coragem de fazer uso do próprio entendimento” – “sapere aude!” -, como diz Kant, é o lema do Iluminismo.

Para Kant não é possível alcançarmos uma sociedade esclarecida enquanto seus membros não forem capazes de pensar por si mesmos o seu próprio destino. Pensar por si mesmo é tornar-se adulto, sair da menoridade, da tutela de alguém ou de alguma instância legisladora estranha, é, enfim, proclamar a sua autonomia. A questão é: como ensinar o homem a pensar por si mesmo? E quem poderia assumir uma tal missão formativa senão alguém capaz de pensar por si mesmo? Essa questão nos leva a dizer algo do Kant professor, educador, pedagogo.

Tomemos como um exemplo ilustrativo do livro “Pedagogia” de Kant a seguinte afirmação: “O homem é a única criatura que precisa ser educada”. Percebemos aí que o homem não se educa por si mesmo, não alcança sua finalidade sozinho. O homem só pode alcançar sua finalidade como parte de uma comunidade humana; e a natureza humana haverá de ser sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação que abre a perspectiva de uma futura felicidade da espécie humana.

Note-se que se o homem precisa ser educado, é porque as suas disposições naturais não se desenvolvem plenamente por si mesmas. Neste sentido, a educação é uma arte; não uma arte mecânica, mas uma arte racional, reflexiva, dinâmica, conforme a natureza específica do ser humano. Muitos animais podem ser amestrados, treinados a obedecer a ordens de comando e estimulados a comportar-se de determinados modos. É claro que Kant não está comparando os homens com os animais. Antes ele está comparando a responsabilidade por si mesmo (e por outros) que um adulto (“maior de idade”) no exercício de sua liberdade e no uso de sua faculdade racional deve ter, com a criança ou adolescente (“menor de idade”) que, como tal, não está ainda em condições de responder plenamente por si mesmo e, por isso, está sob a tutela de alguém (os pais, por exemplo) até que atinja a sua idade adulta. Seria um grave problema manter o ser humano num estado infantil. Em matéria de religião seria equivalente a permanecer espiritual e intelectualmente no estágio das estorinhas religiosas infantis, das fábulas e das práticas devocionistas um tanto distantes do núcleo propriamente salvífico da religião.

Kant nos diz que a educação deve cumprir com três exigências: desenvolver habilidade, adquirir prudência, atingir a moralidade. A habilidade é necessária ao talento; a prudência é necessária para aplicar aos homens a nossa habilidade; e a moralidade é necessária para que a realização do homem, como sujeito livre (como fim em si mesmo), como um ser de dignidade, seja efetivamente real.

O que Kant espera do professor é que este desenvolva no aluno o homem de entendimento, depois o homem de razão, e, finalmente, o homem moral. A moralidade é o ponto culminante do processo educativo. A educação não consiste na simples transmissão de conhecimentos, mas em ensinar os indivíduos a pensar de forma autônoma e a agir (autonomamente) de acordo com princípios morais (racionais) válidos universalmente. A moralidade não depende das consequências de nossas ações, mas antes de nosso dever em cumprir aqueles princípios universais que encontramos em nós mesmos.

Agir moralmente é agir pela razão; agir racionalmente é obedecer ao que a razão ordena, é realizar uma ação por dever. Daí que o conhecimento de todos os nossos deveres morais/racionais como (se fossem) mandamentos divinos constitui o que Kant chamou de “religião nos limites da simples razão”.

O caso é que Kant provocou reflexões profundas e originais sobre a natureza da educação e da moralidade. Ensinou que a realização/felicidade humana não consiste em acumular conhecimentos para serem mecanicamente aplicados. A realização humana reclama a autonomia racional, o pensar, o decidir e o agir por si mesmo, o poder ser moralmente íntegro e, assim, tornar-se digno da felicidade.

Com efeito, nem sempre pessoas inteligentes agem racionalmente, ou seja, moralmente. Por isso, o processo educativo não pode se resumir em transmitir quantitativamente informações às crianças, mantendo-as assim na passividade de absorver conhecimento alheios para continuar executando tarefas e funções de modo subserviente, não livre, não autonomamente. Para Kant, era preciso insistir na ativa capacidade humana de organizar informações e conhecimentos sob princípios racionais e extrair deles princípios morais universais de conduta.

Educar o homem para a autonomia, para o exercício da liberdade e da responsabilidade moral é o caminho mais seguro para o surgimento de uma futura sociedade de pessoas mais felizes. Assim pensava Kant. Precisamos agora, três séculos depois de seu nascimento, nos perguntar se ele tinha razão ou se ele estava enganado. O fato é que Kant continua nos interpelando a pensar por nós mesmos em meio a um bombardeio de informações diárias (verdadeiras e falsas) o que é certo e o que é errado, o que faz sentido e o que não faz sentido, o que humaniza e o que desumaniza, e, em termos religiosos, o que tem a ver com o projeto salvífico e libertador de Jesus Cristo e o que o é sensacionalismo religioso (propaganda/marketing), fundamentalismo cego (infantil) e degradação perversa de seu Evangelho com vistas a manter as pessoas na ignorância religiosa e na consequente dependência destas para com os seus líderes “religiosos”, “gurus”, “guias espirituais”, “ídolos midiáticos místicos/esotéricos” e suas respectivas empresas capitalistas designadas comumente como “igrejas”!: “sapere aude!”

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

 

 

 

 

...