Élio Gasda, SJ
Parece que a democracia deixou de ser o motor do desenvolvimento político que foi após a segunda guerra mundial: Democracia como a forma ideal de governo; separação de poderes; expansão dos direitos humanos e fundamentais no âmbito do Estado de Direito. Tudo isso no contexto de reconhecimento do pluralismo e do multilateralismo.
Uma das principais causas é a crise de sentido da democracia. Papa Francisco, na Fratelli Tutti n. 14, fala do fim da consciência histórica como sombra: “Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça é esvaziar de sentido e manipular palavras. Que significado têm palavras como democracia, liberdade, justiça? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio que serve para justificar qualquer ação”, diz Francisco.
Uma democracia esvaziada de sentido porque “Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça com desigualdade”, diz Francisco. Estas são as maiores ameaças à democracia. Um pequenino número de super-ricos utiliza sua riqueza para manter as coisas como estão, usam a riqueza para defender sua riqueza corrompendo a democracia. Grandes ruralistas não se importam com democracia. As grandes mineradoras se importam com a democracia? As Big Techs não se importam. Elon Musk menos ainda. Elites patrimonialistas, patriarcais, racistas têm desprezo pelos pobres, e a maioria absoluta da população é pobre. A maioria da população é composta por mulheres, mas temos apenas 90 mulheres na câmara de deputados e 13 senadoras. Negros são 56% da população, mas sua presença na Câmara federal é de 25%.
Estes dados nos ajudam a entender por que 50% do Congresso Nacional é contra taxar super-ricos, é contra acabar com supersalários ou acabar com a escala 6×1. Um Congresso composto por 273 empresários e 160 fazendeiros, bancada da bíblia, da bala, do boi. Pior congresso da história, sem dúvida.
Extrema-direita e semi-teocracia
O fim da consciência histórica e o esvaziamento do sentido da democracia têm duas consequências: A primeira delas é o avanço da extrema direita que se dá no contexto da transição do capitalismo neoliberal ao capitalismo ultraliberal. Não se trata apenas de neoliberalismo, mas de uma forma de ultraliberalismo. Ao desviar o foco das consequências sociais do capitalismo e da concentração de poder nas mãos de poucas empresas, discursos extremistas protegem interesses financeiros enquanto atacam as bases da democracia e as instituições do Estado. Ultraliberalismo é projeto global que visa consolidar a supremacia da elite financeira enquanto destrói conquistas sociais. Está se consolidando um sistema ainda mais excludente, desigual e violento.
Big techs (Google, Apple, Meta, Amazon, Microsoft) são as principais agentes do ultraliberalismo. São magnatas digitais que exercem de ‘governantes invisíveis’ a serviço dos interesses das elites globais. As Big techs lideram essa elite controlando a informação e promovendo a ideologia ultraliberal autoritária. É a oligarquia mais perigosa de todos os tempos.
A Internet é sua principal ferramenta. Plataformas digitais não são neutras ou imparciais. Há uma internacional de extrema-direita reacionária que compartilha a mesma ideologia, participa dos mesmos fóruns e redes e tem os mesmos inimigos. A maioria dos eleitores passa mais da metade de suas vidas na Internet assistindo a Youtubers, instagramers, influencers. O Brasil é campeão mundial em número de influenciadores digitais. Só no Instagram são 12 milhões.
Elon Musk, um destes magnatas digitais, deixou de ser invisível. O homem mais rico do planeta é o indutor da onda global da extrema-direita. Musk tem mais poder que nenhum outro empresário. Sua influência se insere no contexto de apoio de figuras ultra ricas e instituições como Fiesp, Fiemg, Febraban, CNI, e a Faria Lima, que querem perpetuar o sistema de exploração do trabalho e dos recursos naturais.
O ultraliberalismo autoritário pode ser observado em Milei, Bukele, Bolsonaro e Donald Trump. O trumpismo lidera o estabelecimento de uma nova ordem mundial baseada no autoritarismo ultraliberal reacionário. A invasão do Capitólio e a destruição da Praça dos Três Poderes mostram que este autoritarismo é neofascista e violento. A ascensão de movimentos neonazistas na Alemanha, Áustria, Ucrania e no Brasil são exemplos deste ultraliberalismo violento.
Não são apenas golpes de Estado que derrubam democracias. Redes sociais podem derrubar democracias. Mentiras também. A verdade é um dos pilares da democracia. 94 milhões de pessoas admitem ter acreditado em fake news (IBGE). A falta de capacidade de reflexão se concretiza no efeito manada e no comportamento de rebanho. A extrema-direita defende a pós-democracia: para ela, instituições como executivo, legislativo, judiciário são meramente decorativas.
A segunda consequência é o avanço da semi-teocracia evangélica/católica fundamentalista. A expansão do ultraliberalismo autoritário se dá em sintonia com a instrumentalização da religião e o abuso do nome de Deus. A Frente Parlamentar Evangélica já tem 202 deputados federais e 26 senadores. Em 2024 foi criada a Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana.
Recomendo assistir ao documentário da diretora Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos, disponível na Netflix. A teologia do domínio já é realidade. Não é sobre fé. É sobre poder. A teologia do domínio é ensinada em centenas de igrejas em todo Brasil. Em 2009, Edir Macedo, lançou o livro “Plano de Poder” e criou um partido. Escolas cívico-militares e o grupo “Legendários” fazem parte dessa estratégia.
Ultraliberalismo autoritário e fundamentalismo religioso demandam respostas urgentes. Governos, sociedade civil e instituições devem agir. Está em jogo a soberania nacional, os direitos fundamentais e a preservação do nosso patrimônio natural. É urgente fortalecer a sociedade civil, solidificar o Estado de Direito, recuperar o verdadeiro sentido da democracia. Pensar outras formas de democracias de baixo para cima. Democratizar a democracia, resgatar seu verdadeiro sentido.
Élio Gasda, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
21/08/25

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