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A encarnação e o feminino

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Karen Colares

No ano de 2007, foi lançado no Brasil o livro “A Cabana”, que, em 2017, já ultrapassava os 10 milhões de cópias vendidas e havia sido traduzido para mais de 30 línguas. As opiniões acerca dele se dividiam. Muitos cristãos recomendavam sua leitura como um livro para despertar reflexões profundas sobre o sofrimento e a relação pessoal com Deus; outros estavam preocupados em aferir o quanto os detalhes gráficos e literários do livro se aproximavam das Escrituras. Existem efetivamente muitos pontos teológicos dignos de discussão na obra. Nem tudo o que ali aparece reflete um ensino sadio das Escrituras. Entretanto, o item em particular que mais suscitou opiniões apaixonadas foi o fato de Deus Pai aparecer na forma de uma senhora negra muito bondosa e o Espírito Santo ser representado por uma senhora asiática chamada Sarayu.

Um Deus sempre pensado em termos masculinos jamais poderia ser representado por uma mulher. Acaso, as mulheres podem espelhar algo sobre quem seja Deus? Esse papel não foi historicamente delegado aos homens, representantes por excelência da divindade? Não nos acostumamos a pensar em Deus sempre como um homem superlativizado, nas palavras de Freud, o grande Pai e nas de Feuerbach, uma projeção do próprio homem?

Ao longo da história da teologia cristã, a afirmação de que a mulher é criada depois, a partir de e para o homem, legou uma noção hierárquica em que aparecem em cena Deus, homem e depois mulher. Sendo a mulher uma parte do homem, seria sua semelhante e não do divino. Uma grave distorção aparece: a ideia de que apenas o masculino traduz quem seja Deus.

Não apenas o relato da criação serviu de fundamentação para legar às mulheres uma posição mais ‘distante’ de Deus, mas também as ideias dualistas que estiveram presentes em muitas vertentes filosóficas e depois fizeram pano de fundo para as reflexões teológicas.

A noção de que a realidade, inclusive humana, se divide em imaterialidade e materialidade não seria prejudicial se essas realidades não fossem hierarquizadas e associadas a sexos específicos. Assim, o imaterial foi mais valorizado do que o material e infelizmente, associado apenas ao masculino. Dessa forma, reforçou-se a percepção de que as mulheres não são adequadas como metáforas para falar de Deus.

Não apenas nós cristãos da atualidade lidamos com o preconceito relativo ao sexo feminino. Na época de Jesus não era diferente; o período entre os Testamentos viu o crescimento de literaturas que depreciavam a imagem feminina e sempre a colocavam sob suspeita moral. Ben Siraque, intelectual aristocrata (2º séc. a. C) autor do Livro conhecido como Eclesiástico ou Sirácida, iniciou a propagação da ideia da mulher como porta de entrada do pecado no mundo, de modo a embasar teologicamente a desconfiança em relação à conduta das mulheres. Não mais Adão e Eva haviam pecado diante de Deus, mas agora, a responsabilidade caía sobre Eva e todas as mulheres eram Evas por natureza.

A posição da mulher no NT era em todos os níveis inferior à dos homens. A vida dos judeus da época de Jesus possuía dois eixos centrais: a escola e a sinagoga, sendo a mulher excluída da primeira. Na sinagoga, não era contada no quórum necessário para o início do ofício público. Na esfera da oração, não se atribuía às mulheres obrigações do mesmo grau de seriedade que aos homens. Doutores da lei e rabinos não ensinavam às mulheres.

A pergunta que emerge neste ambiente é, portanto, se a prática e discurso de Jesus trouxeram nova luz a essa situação. Para responder a tal pergunta, vamos nos debruçar brevemente sobre o texto de  Lucas 15,1,2 e 8-10.

O cenário retratado na parábola era bem conhecido dos ouvintes originais, mas talvez precise ser detalhado para nós, ouvintes modernos. O chão rústico das casas pobres, feitas de pedras, tinha muitas frestas, em que caíam moedas e outros cacos e migalhas. Isso era tão frequente que hoje os arqueólogos usam as moedas encontradas nessas fissuras para datar a época em que as pessoas viveram nas respectivas casas. Ao varrer a casa, a mulher esperaria ouvir o tilintar da moeda entre as pedras.

A parábola em curso compõe uma tríade unificada pelo elemento de celebração. Os amigos do pastor se regozijam por ele ter encontrado a ovelha perdida, as amigas da mulher se regozijam por ela haver encontrado a moeda, mas o irmão mais novo não se regozija pelo irmão mais velho que se arrepende, fazendo crítica aos acusadores de Jesus que se ressentem do fato de ele comungar com os pecadores com o objetivo de restaurá-los. Eles se portam como um filho ressentido e não como amigos de Deus.

O ponto inovador, no entanto, é o uso de uma realidade do universo feminino e da imagem de uma mulher para se falar sobre Deus. Nas palavras de Jesus, mulheres também expressam algo acerca de quem Deus é. Através da encarnação, se repensa a situação de distanciamento das mulheres em relação ao divino. Em se tratando da experiência vivenciada em países em desenvolvimento, não se pode negligenciar as consequências efetivas dos discursos dualistas. São os corpos dos menos favorecidos que são vilipendiados no processo de se enaltecer facetas imateriais.

A encarnação grita para nós que o corpo importa. Assim, a igreja deveria se preocupar com corpos violados na infância, agredidos na vida adulta, traficados para escravização sexual, objetados na rede de pornografia, subjugados em relações desiguais que dizem se basear no modelo bíblico da ‘submissão’. Não é possível alienar a personalidade dos aspectos corporais, como se o jeito de ser de uma pessoa não fosse perpassado pela maneira como gesticula, se posiciona e utiliza sua linguagem corporal. É inconcebível a existência humana incorpórea. O ser humano é criatura de Deus com toda a sua existência. Por isso, Deus não tem a ver só com a “alma”, mas do mesmo modo com o corpo. Uma valorização maior do espiritual ou ideal frente ao carnal ou material não tem fundamento na fé da criação e nem daquela expressa na encarnação.

Despertadas para a beleza de sua própria condição, as mulheres podem tomar conhecimento das contribuições que podem agregar às diferentes relações nas quais estão envoltas. Podem lançar-se de maneira inteira no experienciar da realidade divina, pois Deus não é homem ou mulher. Como a mulher dessa parábola, nós podemos, hoje, buscar diligentemente pelo perdido, participando da alegria de reencontrá-lo e, assim, refletindo o amor incondicional que emana de Deus

Karen Colares é doutora em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

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