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A espiritualidade inaciana é leiga

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Alfredo Sampaio Costa SJ –

Notas sobre “inacianidade”1

Nos idos anos de 1999 o padre jesuíta Carlos Rafael Cabarrús, SJ escreveu um iluminador artigo que foi mais tarde publicado na Revista de Espiritualidade Itaici n.45. Gostaria de relançar esse artigo nesta plataforma, acrescentando alguns comentários. A celebração dos centenários inacianos nos brindou com a alegre constatação de que cada vez mais mulheres e homens leigas e leigos estão descobrindo a riqueza da espiritualidade inaciana. O que tem atraído tantas pessoas no modo inaciano de proceder? É possível identificar “sinais de inacianidade” nas pessoas que colaboram em nossas instituições, paróquias, projetos sociais etc?

Comungo com o Pe. Cabarrús que “constitui uma urgência trabalhar para tornar a espiritualidade inaciana mais diáfana e, sobretudo, mais próxima de um maior número de mulheres e homens, que possam encontrar nela um “modo de proceder” no mundo”. E, desde já, expresso o meu agradecimento por todas e todos que, com sua dedicação e serviço, colaboram para que este carisma possa alcançar mais e mais espaço dentro do mundo leigo.

Mesmo para aquelas e aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de vivenciar a experiência dos Exercícios, que apenas sentem simpatia por algum aspecto da espiritualidade inaciana, talvez ainda não podendo compreender no seu todo muitas ideias e conceitos presentes nela, acreditamos, com Cabarrús, que “será possível que se deixem impressionar e interpelar pelos traços que caracterizam a inacianidade e que, possivelmente, tenham visto outros(as) viverem e tenham se sentido atraídos(as) por eles”.

 

Uma espiritualidade que nasce leiga

Comenta Cabarrús:

“A primeira coisa que quero ressaltar é o caráter de leigo de Inácio de Loyola, quando experimentou todas aquelas vivências, que depois plasmou nos Exercícios Espirituais, e que finalmente marcaram a maneira de ser da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola era leigo, quando iniciou seu processo de conversão, em Loyola, e começa a reconhecer a existência de diversos espíritos. Era leigo, quando viveu a intensa experiência de Manresa. Era leigo, quando experimentou e escreveu os Exercícios Espirituais. Era leigo, quando começou a ter, junto de si, companheiros aos quais foi dando os Exercícios e, assim, lhes foi comunicando um modo específico de ser. A espiritualidade inaciana, a inacianidade, nasce pois como um carisma leigo, descoberto por um leigo e com uma metodologia – os Exercícios – que foram concebidos a partir desta perspectiva […]. O carisma inaciano pode ser vivido – e é vivido – em pessoas e em instituições não jesuítas, com pleno direito”.

Como leigo, Inácio, escreveu os Exercícios, depois de ter sido uma experiência vivida por ele. E aqui nos deparamos com algo fundamental da espiritualidade inaciana: O básico da espiritualidade inaciana é a experiência que se vive.

 

Os Exercícios Espirituais, o berço da “inacianidade”

Quem se aventura a entrar nos Exercícios Espirituais, seja qual for a modalidade escolhida para fazê-los, desde o início se dá conta que “experimentar” é fundamental, determinante. Pois se trata de “exercitar-se”, e isso não se pode fazer teoricamente.

Cabarrús chama a atenção para o fato que “três verbos eixos são cruciais na experiência dos Exercícios: “sentir”: deixar que minha sensibilidade vibre da mesma maneira que vibra a de Jesus; “fazer”: fazer com e como Jesus, no horizonte de que venha o Reino; e “padecer”: consequência lógica de almejar o Reino ao modo de Jesus, ante o poder deste mundo que o abafa e só se entendem a partir da construção do Reino”. Ao percorrer o itinerário inaciano, esses três verbos irão reverberar nos nossos corações, comprometendo-nos mais e mais com a dinâmica do Reino de Deus em andamento no mundo.

O que se trata de favorecer, incrementar, é a capacidade da pessoa de “experimentar”, com todo seu ser, essa experiência. Para tanto, Inácio lança mão de todos os recursos disponíveis, também a nível psicológico, captando o papel da culpa sadia, como mola para viver a experiência da conversão, empregando o mecanismo da emulação, para dispor ao compromisso com o Reino a partir do seguimento de Jesus, valorizando a sensibilidade e a dimensão afetiva da oração, usará todos os sentidos (ver, ouvir, saborear…) para conduzir a um conhecimento interno de Jesus Cristo que leve a um seguimento amoroso e apaixonado.

Cabarrús afirma que esta tríplice experiência – sentir, fazer e padecer -, buscada na metodologia dos EE, constituirá a matriz para formar o “inaciano” em alguém. É o que chamamos “inacianidade”. Percorramos juntos o itinerário desta experiência, conforme os Exercícios.

Os Exercícios se abrem com a consideração do chamado Princípio e Fundamento (EE 23). O que se busca é experimentar o Amor primeiro de Deus e, arrastados e atraídos por tal Amor, que alcancemos a liberdade interior necessária para poder servir o Senhor. Essa busca da liberdade, de crescer nela, é algo constitutivo da “inacianidade”.

Inácio em umas regras para jesuítas – pouco conhecidas – estipulava o seguinte, em torno da liberdade: “Conserva a liberdade em qualquer lugar, e diante de qualquer pessoa, sem levar em conta a ninguém; antes, sempre mantém a liberdade de espírito, diante do que enfrentas; e não a percas por nenhum empecilho: nunca falhes nisto”[2].

Ser inaciana e inaciano é não abrir mão jamais da liberdade, por nenhum preço! Aqui, ao iniciar os Exercícios, é claro que não podemos pretender ter alcançado já uma liberdade total. O que Inácio quer é exatamente que experimentemos como é difícil vivermos livremente e descobrir as forças que interferem na vivência da minha liberdade, pondo obstáculos e dificultando-a.

A etapa que se segue (que Inácio chama de Primeira Semana) quer levar a uma experiência dupla: somos pecadores, mas pecadores perdoados! O Amor vivido no Fundamento se expressa aqui na nossa realidade ambígua, confusa, muitas vezes traumática. É Amor Misericórdia! A pessoa experimenta, conduzida pelo Amor de Deus, que seu ser e seu agir estão entorpecidos pelo pecado e isso tem consequências terríveis: produz a morte, a alienação, a opressão, a exclusão. Ao tomar consciência da realidade profunda do seu pecado, surge Cristo crucificado com quem somos convidados a ter uma conversa franca e nos perguntarmos: “Que fiz, que faço, que farei por Cristo?”(EE 53).

É a experiência de ser pecador(a) perdoado(a) que matiza e impele todos os traços da espiritualidade inaciana, como veremos mais adiante. A maneira como Inácio nos convida a experimentá-lo, ser pecador(a) “aberto(a) para Deus”, não afasta, mas aproxima de Deus – contra toda a habitual expectativa religiosa.

Continuando, tem-se a experiência da contemplação do Reino, que nos introduz de cheio numa modalidade do fazer. É fazer tudo à maneira de Jesus. E é fazermos também nós o Reino. Um fazer que é também “deixar-se fazer”, deixar-se afetar – ser posto, ser escolhido -deixar atuar o Espírito (a graça). Com isto se inicia a segunda semana.

 

Depois, a contemplação da Encarnação nos vai fazer “sentir” o que experimenta a Trindade, “vendo” com ela, para depois percebermos sua extrema solidariedade, ao formular a frase “façamos a redenção do gênero humano” (EE 107). A contemplação nos convida a isso também. A contemplação de toda a vida oculta é um caminho, para aprender a sentir e proceder à maneira de Jesus. O método da contemplação nos convida a ter os mesmos sentimentos e o mesmo modo de proceder dele.

Encontramo-nos, em seguida, a chamada Jornada inaciana (Bandeiras, Binários, Três Modos de Humildade). Faz-nos experimentar a compreensão mais profunda dos desejos e seu dinamismo. Primeiro para, pelo menos, desejar. Isto seria a nível de Princípio e Fundamento. Depois, de uma forma mais simples – talvez, no oferecimento do Reino – desejando de todo coração, com “determinação deliberada”, para, em seguida, aprender que a chave está em desejar ser postos(as) com o Filho. Experimentar este desejo nos dispõe à vivência da paixão – Terceira Semana.

Experimentar a paixão é o convite por excelência à solidariedade, como conseqüência do amor. Convida-nos a fazer e padecer: “que devo eu fazer e padecer por Ele” (EE 197).

Finalmente, a ressurreição – Quarta Semana – é experimentar a esperança e a alegria da nova vida de Jesus: “… a graça para me alegrar e gozar intensamente por tanta glória e gozo de Cristo Nosso Senhor” (EE 221). É aprender a “gerar esperança” em nós mesmos e nos demais, sabendo também que é uma graça a pedir.

Os Exercícios culminam na contemplação para alcançar amor, que é a grande síntese de tudo. É experimentar que é o amor que deve reger e, também, que o amor se expressa concretizando-se em ações. Esta contemplação apresenta a chave da relação com Deus: de amante a amado, de amado a amante (EE 231).

Em síntese, seguindo a experiência dos EE, podemos afirmar que o inaciano, a inaciana, é alguém que se formou numa escola fundamental que o abre ao sentir profundo, ao fazer como tarefa recebida, como dom, e a ser capaz de padecer por esse Jesus, encontrado no sofrimento da humanidade (EE 195), para vivenciar também sua glória no contexto do Reino. Foi esta vivência, que animou os primeiros companheiros de Inácio a buscar outros companheiros e criar organizações (congregações), onde o serviço aos necessitados se fazia crucial, a partir do que se tinha vivido nos Exercícios.

Ora, a experiência dos Exercícios deve ser acompanhada de uma experiência desafiadora no aspecto humano, no histórico. Muitas vezes os Exercícios perdem sua garra, precisamente porque não são acompanhados ou precedidos de um ter compartilhado, pelo menos por períodos sérios e significativos, da dor da humanidade, da injustiça e do querer devolver, ao mundo, o rosto humano. No entanto, esta experiência de contato sério com a dor do mundo – sobretudo para os(as) leigos(as) – não é determinada unicamente por um tempo longo de contato com o sofrimento das maiorias, mas por um encontro significativo – pelos efeitos internos que ela produz – com essa realidade; um encontro que pode partir de um acontecimento inesperado ou traumático (como a bala de canhão para Inácio), uma experiência ocasional porém marcante, um diálogo profundo com alguém que compartilhou, de perto, essa realidade, os meios de comunicação, ou algo similar.

Em definitivo, uma pessoa que fez a experiência dos Exercícios e tem experiência de ter compartilhado, de perto, com as maiorias necessitadas, poderá ter seguramente, em seu modo de ser e atuar, os traços da espiritualidade inaciana.

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de teologia da FAJE

 

1 O Pe. Arrupe, numa Alocução que dirigiu aos participantes do Simpósio sobre “Ensino Secundário” (13 de setembro de 1980), empregou esta palavra, quando dizia: “a educação que receberem nossos alunos os dotará de certa inacianidade, se me permitis o termo”. Hoje quero recuperar esta formulação do Pe. Arrupe, para falar da espiritualidade inaciana leiga.

 

[2] São pouco conhecidas umas regras apresentadas no volume XII das cartas de Inácio, no Apêndice 6, pp. 678-679. São sete regras que descrevem atitudes que podem traduzir-se em normas concretas de comportamento. Poderíamos defini-las como o grande “pressuposto” de todo jesuíta, se quer ser instrumento válido para a missão. Devemos esta descoberta ao Pe. Chércoles. Apresentamos a 5ª destas regras.

 

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