Alfredo Sampaio Costa SJ
Estamos nos aproximando do encerramento de um ano onde celebramos os centenários inacianos dos 500 anos da conversão de Inácio e os 400 anos da sua canonização. Neste tempo a Companhia de Jesus tem procurado dar a conhecer experiências fundamentais do itinerário inaciano, tendo aprendido do próprio Inácio que as graças recebidas por ele são para toda a Igreja. Há um momento decisivo da vida de Inácio bem pouco conhecido. Queremos dedicar as reflexões seguintes a dá-la a conhecer. Foi uma das experiências místicas mais importantes da vida daquele santo, ao entrar na cidade de Roma, onde iria se colocar à disposição do Papa e fundar a Companhia de Jesus. Ela aconteceu em uma capelinha em La Storta, nos arredores de Roma. Experiência mística de altíssimo calibre, comparável àquela experimentada em Manresa, às margens do Rio Cardoner, essa experiência vivida na maturidade de uma vida colocada a serviço do seu Senhor, marca uma última e definitiva guinada na espiritualidade de Inácio, abrindo-a para uma dimensão marcadamente eclesial e romana.
Santo Inácio jamais esqueceu aquele dia de outono do ano de 1537. Ele estava se dirigindo para a Cidade Eterna e sentia todo o peso das tensões acumuladas no curso do seu peregrinar ao centro do mistério de Deus. O seu plano traçado inicialmente, ir à Terra Santa, tinha resultado impossível devido à guerra com os turcos. Roma se impõe, então, como o lugar concreto onde o Senhor deseja ser-lhe propício. Já há alguns meses que foi ordenado sacerdote, ainda que não tenha celebrado a Eucaristia, talvez pelo desejo teimoso de poder fazê-lo na Terra Santa. Formou já uma verdadeira companhia com seus amigos no Senhor; com eles, amadureceu o desejo de se chamarem “Companhia de Jesus”.
O cenário. Em meio às interrogações e desafios que esse desejo de oferecer um corpo para o Espírito lhe coloca em concreto, Inácio suplica à Virgem Maria a graça de que sua Divina Majestade, o Pai onipotente, o coloque com seu Filho carregando a cruz, como sinal de confirmação – por parte do Espírito – de seus projetos e iniciativas a serviço da Igreja do Senhor. O que lhe preocupa em primeiro lugar não é a Companhia, cujos contornos concretos está começando a vislumbrar, tão diferentes da vida religiosa de monges e mendicantes. Não são tampouco as preocupações que leva consigo até as portas de Roma, envolvendo os esperados conflitos e incompreensões que lhe aguardavam na cidade dos papas. A sua única preocupação, a sua única paixão, é sempre como conseguir comprazer à sua Divina Majestade por meio da busca contínua da imitação de Cristo, carregando com Ele a Cruz para que o mundo tenha vida em abundância.
A visão na capela de La Storta representa a confirmação espiritual de sua busca amorosa e de sua oração de discernimento. No acontecimento espiritual de La Storta, com sua palavra divina tão simples “ser colocados com o Filho”, ressoa com força renovada o mistério da Aliança. Essa confirmação espiritual de ser colocado com o Filho, enviado pelo Pai para servir, torna-se inseparável de toda a atividade de Inácio, de seus projetos e orientações, de seu estilo de serviço e de seu modo de proceder.
Tratou-se de um divisor de águas para Inácio. A partir daquele momento, “sua Jerusalém será Roma”. Será em Roma, de onde não sairá mais até sua morte, onde o Peregrino Inácio firmará seus pés de agora em diante. Ali deverá realizar as “oblações de maior estima” do exercício do Reino (EE 97) nas tarefas cotidianas da administração da Ordem que estava para nascer. Mudança de rumo drástica, assumida por Inácio em um gesto de amor. Faz lembrar as palavras do Ressuscitado a Pedro: “Quando eras jovem, tu te cingias a ti mesmo e ias para onde querias; quando, porém, te tornares velho, estenderá tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para aonde não queres” (Jo 21,18).
O Senhor pode, muitas vezes, conduzir-nos a lugares, situações, desafios jamais esperados, e a tríplice pergunta a Pedro será a única que realmente importa: “Tu me amas? Apascenta minhas ovelhas!” (Jo 21,15).
Fazer memória deste momento vivido intensamente por Inácio segue sendo importante ainda tantos anos depois: é como uma luz a partir da qual contemplar o mundo todo, nossos sonhos, projetos, desejos apostólicos… Grandes ou pequenos, ao nosso alcance ou inatingíveis, será sempre importante “sairmos do nosso próprio amor e interesse” (cf. EE 169) e nos abrirmos ao que o Senhor nos pede.
Essa visão que nos abre ao mistério da Trindade na sua obra de amor pela salvação do mundo, ao mistério da Divina Majestade que nada pode constranger nem obstaculizar, aproxima-nos, pela forma mesma desse mistério inefável, ao Verbo Encarnado, feito servo e escravo na realidade precisa e limitada de nossa existência[1]. No momento decisivo da fundação de uma Ordem com um impulso apostólico sem precedentes, Inácio é interpelado pela própria Trindade e chamado a “ajustar” o seu projeto ao Projeto Divino, na pobreza e humildade.
Bebendo da riqueza das fontes inacianas
Os textos que transmitem o relato são uns 12 ao todo, escritos por autores diferentes que se sucedem no tempo, com pontos de vista e fins diferentes quando narram o fato, seja que queiram fazer um simples relato, seja que o comentem. Podemos distinguir entre textos principais, por serem originais e muito próximos ao acontecimento, e uma dezena de textos secundários, que não gozam da mesma autoridade, mas trazem detalhes importantes introduzidos durante a sua elaboração[2].
Como é possível tamanha diversidade de comentadores e de versões, tratando-se de uma experiência chave para toda a história da Companhia? Antes de nos aproximarmos dos relatos na sua múltipla coloração, cabe uma breve reflexão sobre esse fato. Alguns autores o aproximaram dos Evangelhos, que narram a única Vida de Nosso Senhor em pinceladas dificilmente harmonizáveis. Outros apontam que o número grande de versões que chegaram a nós já atesta a importância do acontecido e o impacto diferenciado que teve em cada companheiro de Inácio.
Comecemos tomando as lembranças do próprio Inácio: A experiência de Inácio na Capela de La Storta em outubro de 1537, quatro meses depois da sua ordenação, a “poucas milhas antes de chegar a Roma”, é contada sobriamente, como de costume, na Autobiografia:
“Acabado o ano, não se encontrando passagem, decidiram ir a Roma. O peregrino quis ir também, porque da outra vez, quando os companheiros foram a Roma, aqueles dois, dos quais ele duvidava, se mostraram muito benévolos. Dirigiam-se a Roma divididos em três ou quatro grupos. O peregrino ia com Fabro e Laínez. Nesta viagem foi muito especialmente visitado do Senhor. Determinara, depois de ordenado sacerdote, ficar um ano inteiro sem dizer missa, preparando-se e rogando à Virgem o quisesse por com seu Filho. Estando um dia, algumas milhas antes de chegar a Roma, numa Igreja, fazendo oração, sentiu tal mudança em sua alma e viu tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo seu Filho, que não teria ânimo para duvidar disto, de que o Pai o punha com seu Filho” (Autobiografia 96).
Inácio afirma que no caminho para Roma “foi muito especialmente visitado pelo Senhor” (Aut. 96). Tinham se passado catorze desde que Inácio ali estivera, quando acudiu com a multidão de peregrinos para conseguir a permissão de embarcar para Jerusalém. Catorze anos cheios de experiências espirituais, contatos humanos, ajuda às almas, com êxito e igualmente fracassos, tentativas de conquistar companheiros até que por fim fora constituído o grupo definitivo dos “amigos no Senhor”.
Roma: terá mudado desde então? O Papa Adriano VI havia tentado reformar a Igreja. Haviam começado a florescer diversas “companhias”, grupos animados pelo espírito cristão e desejos de reforma. Roma é a Roma do Papa Paulo III, que acabava de elevar vários bispos reformadores ao cardinalato, na tentativa de enfrentar os males que enfraquecem a Igreja: os abusos nos benefícios eclesiásticos, abusos no abandono das dioceses, na Cúria Romana, na nomeação de pregadores e confessores, com frequência religiosos que causam estragos espirituais nos mosteiros femininos. Abusos de simonia, na concessão de indulgências…
Será a essa Igreja que Inácio e seus companheiros se colocarão a serviço, “deposto todo juízo, prontos para obedecer em tudo a verdadeira esposa de Cristo N.S., que é a santa mãe Igreja hierárquica (EE 353). Roma, onde apesar das consolações do caminho, lhe esperam dificultadas insuspeitadas e desconhecidas. Quando Inácio ouviu as palavras “Eu vos serei propício em Roma”, chegou a comentar: “Não sei o que será de nós, se por acaso seremos crucificados em Roma”. “Quando estavam para entrar em Roma, disse aos companheiros que via as janelas fechadas, querendo dizer com isso que encontrariam muitas contrariedades” (Aut. 97). Tratava-se de um sonho, de uma visão, ou interpretava um fato consumado? Na realidade, não faltarão dificuldades de todo gênero durante o primeiro ano de sua estadia em Roma. Mas em La Storta Inácio tinha visto claramente que Deus Pai o colocava com seu Filho e não podia duvidar disso[3].
Toda decisão, grande ou pequena, insere-se em um contexto eclesial, hoje também conflitivo e questionado. Será nessa realidade que ganhará valor e importância a oferta desse pequeno grupo de Amigos no Senhor, liderado por Inácio. Somos chamados a ESCUTAR, DISCERNIR e TRANSFORMAR a Igreja na qual vivemos. Quanto mais árduo o caminho de resposta, mais necessário se tornará deixar ressoar que o Senhor quer que o sirvamos! Ontem, hoje e sempre!
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Homilia do Pe. Geral Peter-Hans Kolvenbach na Igreja de Santo Inácio em Roma por ocasião do 450º. Aniversário da Visão de La Storta, 21 de novembro de 1987.
[2] Gervais DUMEIGE, “La Gracia de La Storta: los relatos”, La Visión de La Storta. Historia y Espiritualidad. CIS 19/1 (1988)22.
[3] Gervais DUMEIGE, “Camino de Roma: Parada en La Storta”, La Visión de La Storta. Historia y Espiritualidad. CIS 19/1 (1988) 17-20.