Geraldo De Mori, SJ
“Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2).
O sínodo que está aprofundando a questão da sinodalidade, com o tema “Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação, Missão”, aberto pelo Papa Francisco no dia 10 de outubro de 2021, realizou, entre fins daquele ano e o primeiro semestre de 2022, sua primeira fase, a fase da “Escuta”, em todas as dioceses do mundo, com uma síntese do resultado obtido feito pelas Conferências Episcopais, no mês de agosto de 2022, enviada à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, em Roma, sendo lidas e trabalhadas por um grupo de especialistas convocados pela Secretaria, entre setembro e outubro. O texto que recolhe esse trabalho, denominado “Documento de Trabalho para a Etapa Continental” (DEC), traz como epígrafe o versículo de Is 54,2: “Alarga o espaço da tua tenda”. Estão previstas sete Assembleias Continentais, nas quais esse texto será aprofundado, juntamente com a síntese das respostas a três questões que foram enviadas a todas as dioceses para serem respondidas pelas Equipes que animaram o processo de escuta, as quais deverão dar origem a uma nova síntese das Conferências.
Três questões foram propostas, já inaugurando a segunda fase do Sínodo, que é a do discernimento. Por isso, o método proposto é o da conversação espiritual. As questões previstas foram: (1) Após ler o DEC, que intuições ecoam de modo mais intenso com as experiências e as realidades concretas da Igreja do continente? (2) Quais tensões ou divergências surgem como importantes na perspectiva do continente e que devem ser enfrentadas nas próximas etapas do Sínodo? (3) Quais prioridades, temas recorrentes e apelos à ação vindas do continente podem ser compartilhadas com as igrejas locais do mundo durante a 1ª Sessão Sinodal que vai se realizar em outubro 2023?
A metodologia proposta para essa nova etapa tem como foco as contribuições mais amplas de sete regiões do planeta a partir das quais vai acontecer a etapa continental: Europa; América Latina e Caribe; África e Madagascar; Ásia; Oceania; América do Norte (USA + Canadá); Oriente Médio (com as contribuições das Igrejas orientais = Ortodoxas). Ela vai privilegiar a partilha das questões trazidas pelo DEC e sintetizadas pelas Conferências Episcopais, em encontros por macrorregiões. Na América Latina e Caribe, para permitir uma participação mais ampla, o Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM) previu a realização de quatro encontros assim organizados: América Central e México (13-17/02/2023, em San Salvador, El Salvador); Caribe (20-24/02/2023, em Santo Domingo, República Dominicana); Países Bolivarianos (27/02-03/03/2023, em Quito, Equador), Cone Sul (06-10/03, em Brasília, Brasil). A partir do que foi discutido em cada um desses encontros da Igreja latino-americana e caribenha, será elaborado o Documento de Síntese a ser enviado, como os dos demais continentes, à Secretaria Geral do Sínodo, que vai elaborar o Documento de Trabalho.
Como se pode perceber, o processo sinodal inaugurado no dia 10 de outubro de 2021, na bela cerimônia presidida pelo Papa Francisco, é, provavelmente, o evento da Igreja Católica que mais implicou os fiéis e outras pessoas a quem se buscou ouvir no mundo. Essa escuta deveria ultrapassar a mera sondagem, feita por institutos de pesquisa. Com efeito, muitas Igrejas locais, baseadas nas escutas realizadas na primeira
etapa, decidiram ampliá-las ou aproveitá-las para novas dinâmicas a serem implementadas na própria Igreja local. Em parte, essa era uma das intenções do Papa, que, como ele diz, num dos quatro princípios que devem regular a ação social dos cristãos, “o tempo é superior ao espaço” (EG 222), e isso significa que, mais que “ocupar espaços”, é preciso “abrir processos”. Quando se busca realmente viver a dinâmica da escuta numa Igreja Sinodal, mais que “burocratas” da pastoral ou dos atos sagrados a partir dos quais se realiza a missão da Igreja, busca-se colocar a caminho com o outro. Isso supõe, certamente, a paciência da escuta, do diálogo com o diferente, saber-se incompleto ou mais pobre se só se caminha com as pessoas que pensam igual a si mesmo. A riqueza da escuta e do diálogo é que eles se abrem ao mistério do outro, do diferente, que muitas vezes é incômodo, questionador, tira cada um do sério e cria desconforto.
Muito se falou e muito ainda vai se falar sobre esse Sínodo. Alguns grupos buscam aproveitar a ocasião para ver se conseguem fazer passar suas “pautas” ou “temas” ou “reivindicações”. Esse não é, porém, o espírito que o Papa tem querido imprimir ao processo. Certamente algumas dessas “pautas” necessitam ser trazidas e discutidas, mas não para serem aprovadas como nos parlamentos, em que vence a maioria. O que o Papa tem insistido é que cada grande questão seja objeto de um “diálogo espiritual”, necessário para todo discernimento e tomada de decisão. Em princípio, nenhum tema deveria ser excluído de antemão, caso uma determinada Igreja o considere importante para o conjunto dos cristãos que buscam viver sua fé na Igreja católica. É necessário, nesse sentido, estar aberto às “surpresas de Deus” ou ao que o Papa, no Sínodo da Amazônia e na Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe denominou de “transbordamento do Espírito”. Esse transbordamento deverá, sem dúvida alguma, ser a condição de possibilidade do sucesso do Sínodo. Sem ele, poderá se discutir muito, acirrar a polarização no seio da Igreja, mas não se conseguirá chegar ao que, segundo o livro dos Atos dos Apóstolos, os primeiros cristãos buscavam quando tentavam deliberar sobre algo fundamental: “O Espírito Santo e nós” (At 15,28).
Muitos fiéis que não costumam acompanhar esse tipo de discussão no dia a dia de suas comunidades e pastorais poderão se perguntar: mas o que tudo o que já foi discutido, no âmbito da própria comunidade, diocese, país e, agora, continente, tem a ver com nossa vida concreta, na comunidade da qual participamos? Essa pergunta, pertinente, sem dúvida, é uma boa provocação, às lideranças de cada Igreja local, a rever a forma como estão implicando o conjunto dos fiéis no processo sinodal. Mas ela também é uma pergunta para o próprio fiel: até que ponto ele está contribuindo para que a porção da Igreja na qual ele vive sua fé seja realmente sinodal, ou seja, busque viver o apelo à comunhão, à participação e à missão. Não é tão simples viver em comunhão com tanta gente que pensa diferente, que às vezes parece até pensar em oposição ao que cada um acredita ser a verdadeira fé da Igreja. O desafio está, porém, posto a todos. E quem deve dar o primeiro passo é justamente quem tem mais dificuldade de experimentar a necessidade da comunhão. Nesse sentido, a comunhão anda de mãos dadas com a participação. Não é porque não me sinto contemplado no que acho que deve ser determinado encaminhamento na comunidade que vou deixar tudo. E a comunhão e a participação não visam somente à formação de “bolhas” de pessoas que acham que elas estão com a razão, que são os verdadeiros católicos, mas ela tem como horizonte a missão. A Igreja só será credível, como aparece nos Atos dos
Apóstolos, se ela testemunha o amor mútuo, vivido na comunhão com Deus e abrindo-se à partilha (At 2,44; 4,32). Oxalá o caminho laborioso e difícil proposto pelo Papa nesse momento difícil da história e da Igreja encontre acolhida e seja fecundo para todos/as.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE