Marília Murta de Almeida
A poeta mineira Adélia Prado, que faz da palavra o barro em que parece moldar a sua fé, nos surpreende frequentemente com ideias sobre Deus que revolvem toda noção pré-concebida ou estaticamente consagrada como verdade. No poema “Festa do corpo de Deus”, publicado originalmente no livro Terra de Santa Cruz, a surpresa beira o escândalo no verso “Jesus tem um par de nádegas!”.
O que fazemos com este verso, depois do primeiro movimento que gera em nós? Para alguns, repulsa, para outros, alegria pela ousadia; inquietação, para quase todos. A mim a surpresa gera curiosidade, movimento do pensamento, alegria. Ao mesmo tempo, a inquietação da certeza de muito pouco compreender. É preciso ler e reler o poema, seguir com Adélia para alcançar o que ela nos pede com seu barro feito de vida, fé e ousadia.
A letra do poema nos faz olhar para o corpo de Jesus na cruz. E os olhos acostumados a ver dor e sofrimento se desviam para a nudez do corpo exposto. O corpo de Jesus está nu e é belo – tem um par de nádegas! A poeta ousa permitir que o olhar se torne erótico diante do corpo nu e exposto. E com essa reviravolta nos faz ver o que tem sido feito do corpo, que é nosso, ao longo da história cristã:
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
O corpo se tornou sede do pecado, o gozo se tornou sua face explícita. O gozo da mulher, sua face demoníaca. Aprendemos assim a buscar Deus sem o corpo, como se Deus e corpo fossem realidades antagônicas. Mas Adélia insiste em mostrar: o corpo de Jesus na cruz é belo e erótico. Não porque está na cruz, mas pelo simples fato de lá estar exposto ao nosso olhar. E se o olhar encontra a liberdade de ver o que lá está, vê um corpo nu e eroticamente belo.
Porque Jesus viveu entre nós, com um corpo como o nosso. E porque a salvação da carne pode ser uma face da salvação, palavra/ideia tão cara a todo tipo de pensamento cristão. Jesus viveu como corpo e assim nos mostrou que o corpo é simplesmente a morada que temos, a forma que a vida toma em nós. A carne, inocente porque despida de todo e qualquer acréscimo, é a face do que somos.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
O poema pede a Jesus na cruz: “olha para mim”. E assim aquele a quem olhamos de repente nos olha. E o corpo lá exposto é também o nosso corpo. E aquele corpo inocente e nu, suspenso na cruz, é como o nosso corpo. Jesus nos salva ao expor a inocência da carne que é também a nossa carne.
E assim a poeta revira a percepção do leitor ao fazer da contemplação da cruz a contemplação de uma festa. O nome do poema, “Festa do corpo de Deus”, remete ao lugar da alegria e do compartilhamento da vida. O corpo de Jesus está em festa por nos possibilitar o encontro com o nosso corpo. A inocência ali exposta nos convida para um outro olhar. E esse olhar renovado só pode ser o do amor:
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor de corpo, amor.
O amor se expõe com o corpo de Jesus nu que se oferece como um fruto lá onde se esperava encontrar execração. A reviravolta que nos transporta da execração à festa nos faz ver o amor onde parecia haver apenas dor. O corpo lá está exposto para que nos vejamos nele, e a compaixão que explode em cada um que vê a execração se desdobra em amor que é também amor de corpo.
E, nesse ponto, a escritura de Adélia Prado parece contrariar a tradicional divisão do amor em diferentes formas. Divisão que restringiu Eros ao amor do corpo e Ágape ao amor universal pregado pelo cristianismo. A poeta reúne numa só imagem as várias formas que aprendemos a dar ao amor. O amor, para Adélia, é uno, como una é a sua fonte. O amor exposto pelo corpo de Jesus na cruz é o amor uno que nos vem do Deus que é uno e que nos movimenta através do desejo expresso pelo corpo. Fome e erotismo são unidos na imagem do corpo/fruto.
O corpo de Jesus na cruz, nu e belo, ainda que em dor, nos diz o amor que é também amor de corpo, amor. A festa do corpo a que a imagem do corpo de Deus nos convida é a festa do amor. E não é por acaso que a festa em que Jesus transforma a água em vinho é uma festa de bodas. O amor humano, em todas as suas formas que são apenas faces do mesmo amor, é a experiência que temos da festa anunciada e prometida. Festa do encontro e da fruição. Festa capaz de suportar a dor que fere mas não destrói.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE