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A glória e a cruz: provocações de duas datas comemorativas

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Ad maiorem Dei gloriam” (Santo Inácio de Loyola)

Geraldo De Mori SJ

No dia 12 de março a Igreja recordou os 400 anos da canonização de alguns santos importantes da história moderna e um santo da época medieval: Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Teresa de Jesus, Felipe Neri e Santo Isidoro, o Lavrador, os dois primeiros, do grupo dos fundadores da Companhia de Jesus; a terceira, uma das grandes figuras da renovação da espiritualidade do Carmelo e da mística na Espanha do século XVI; o quarto, denominado santo da alegria e fundador do Oratório, o último, camponês do século XI, cheio de fé e de caridade, que buscou viver a santidade na vida familiar. A memória dessa data quase que coincidiu com o nono aniversário do início do pontificado de Francisco, no dia 13/03/2022. O título de uma obra do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, A glória e a cruz, traz dois termos que ajudam a pensar o sentido dessas datas.

Na obra de Balthasar, a glória e a cruz remetem aos termos que resumem, segundo ele, uma estética cristã à luz do evangelho joanino. De fato, o Quarto Evangelho divide-se em duas partes, chamadas “livro dos sinais” e “livro da glória”, o primeiro apontando alguns dos sinais a partir dos quais a “glória” de Jesus vai progressivamente se revelando, e o segundo indicando o grande sinal, que, na verdade, é um paradoxo, pois não possui nada de glorioso, mas, ao contrário, é a máxima expressão do que existe de mais ignominioso na humanidade, a saber, a morte injusta de um inocente na cruz. Neste sinal paradoxal, porém, revela-se o grande amor com que Deus amou o mundo, indicando que o caminho da glória, ou seja, da plenitude da revelação de Deus, no qual também se manifesta o humano em sua plenitude, passa pelo seu contrário, ou, como diz Paulo, em 1Cor 1,18-25, pelo escândalo e pela loucura da cruz, vistos, contudo, pelo Apóstolo, como lugar de manifestação da sabedoria e do poder de Deus. A glória, que no AT remetia à presença divina no meio de seu povo, como na nuvem que o esconde de seus perseguidores, quando foge do Egito (Ex 13,21. 22; 14,19. 20; 40, 38), ou quando Deus o alimenta com o maná (Ex 16,10), ou na montanha na qual Deus lhe dá a Lei (Ex 19,9. 16. 21, 34,5), ou ainda na tenda, na qual falava a Moisés (Ex 33,7-11; 40,34), ou, também no tempo de Salomão, na dedicação do templo (1Rs 8,10. 11). No NT, a glória é associada a Jesus, como quando se transfigura (Mt 17,5), antecipando o que será revelado no dom pleno de sua vida por amor, que o leva a ser injustamente crucificado.

Pensar o quarto centenário da canonização de Inácio e dos demais santos que com ele foram “elevados” à glória do altar, não pode ser dissociado do paradoxo do cristianismo, que associa glória e cruz. A própria vida do Gentil-Homem que, depois de ferido pela bala de canhão vai progressivamente compreender a diferença entre a “vanglória” e a “maior glória”, é a manifestação da busca por assemelhar-se Àquele que que ele vai pouco a pouco conhecer como “Rei Eterno”, que o chama a segui-lo “na pena” para também segui-lo na “glória” (EE 95). Sua experiência espiritual e a que lega à Igreja, através dos Exercícios, é justamente a de um caminho mistagógico que faz sair do “próprio amor, querer e interesse” (EE 189), e que conduz progressivamente a querer e escolher “antes pobreza com Cristo pobre que riqueza; desprezos com Cristo cheio deles que honras”; e ser tido “por insensato e louco por Cristo que primeiro foi tido como tal, que por sábio ou prudente neste mundo” (EE 167). Portanto, a “glória” dos altares conferida a Inácio em 12/03/1622, é na verdade o reconhecimento de que o caminho por ele descoberto e trilhado, assemelha-se com o Daquele cuja glória se manifesta no seu contrário, na humildade e no serviço que fazem advir o reino de Deus.

A identidade paradoxal entre glória e cruz, posta em valor no caminho espiritual trilhado por Inácio, tinha recebido, centenas de anos antes dele, em Santo Ireneu de Lion, uma tradução importante: a “glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. Essa tradução ganhou novas releituras na América Latina, na qual nasceu e cresceu Jorge Mario Bergoglio, que se fez jesuíta e foi marcado pela igreja e pela teologia elaborada em seu continente, levando-o, em sua vida e como Papa, a conferir à “glória” novos significados. Seu pontificado busca traduzir isso de muitas maneiras, desde o gesto que, no dia 13 de março de 2013 chamou a atenção do mundo, o de pedir um momento de silêncio para que os que estavam na Praça de São Pedro pudessem rezar por ele e abençoá-lo, numa clara valorização da “teologia do povo de Deus”, posta em valor no Concílio Vaticano II, segundo a qual, é o batismo que nos faz participar da mesma dignidade sacerdotal, profética e real; à sua decisão de não morar no palácio apostólico, mas na Santa Marta, junto com outros irmãos no ministério; à ida a Lampedusa, para chorar pelos “mortos pelos quais ninguém chora”, e, ao longo dos últimos nove anos, comemorados justamente no dia 13/03/2022, às muitas iniciativas para trazer de novo a alegria do Evangelho na vida de quem o acolhe e se deixa seduzir por sua força de transformação e esperança. Para isso, é preciso fugir da “tentação mundana” de “buscar a glória sem passar pela cruz”, sabendo que o Senhor se revela “também através das feridas” e das “dificuldades da humanidade, dos sinais dos tempos”. Não se pode “ter medo de tocas as chagas: são as chagas do Senhor” (Papa Francisco. Homilia na missa dos 400 anos, na Igreja do Jesu, em Roma, em 13/03/2022).

Primeiro Papa jesuíta, eleito já em idade avançada, vista por muitos como transição para que a Igreja pudesse melhor gerir alguns dos escândalos que então pipocavam, tanto financeiros como de abusos, sexuais contra menores e de consciência, mais que simplesmente gerenciar a crise, ele se tornou o grande desencadeador de uma reforma na Igreja, em muitos âmbitos. O primeiro deles, no domínio que é próprio da vocação da igreja, que é ser missionária, anunciando a “alegria do Evangelho”, através de uma palavra nova de esperança para a todas as periferias geográficas e existenciais. Junto a esse anúncio, implicando os discípulos e discípulas de Jesus nas grandes questões que atravessam a humanidade no atual momento da história, sobretudo diante das ameaças ao futuro da vida no planeta e das dificuldades crescentes de acolhida do diferente, seja ele migrante, seja pertencente a uma condição étnica ou sexual, muitas vezes tidas como menos digna de respeito e reconhecimento. Suas inúmeras iniciativas nos últimos nove anos em tantos campos candentes do “viver com” o colocam, sem dúvida alguma como uma das principais lideranças mundiais, de uma palavra nova sobre o presente e o futuro das relações sociais, étnicas, sexuais e religiosas.

Propulsor de uma Igreja antirreferencial, não clerical, vista como povo de Deus, em saída rumo às periferias, à escuta e ao serviço dos homens e mulheres feridos por tantas formas de exclusão e injustiça, “hospital de campanha”, denunciadora de tudo o que desumaniza o humano e, ao mesmo tempo, ameaça o futuro da casa comum, samaritana da fraternidade e da amizade social, o atual Pontífice, ao comemorar nove anos de serviço à “esposa de Cristo”, quer abrir processos que a conduzam a uma verdadeira caminhada sinodal, lançando o caminho de uma “segunda recepção” do Concílio Vaticano II. Reconhecido por muitos como o “grande reformador”, também tem encontrado inúmeras resistências. Por incrível que pareça, entre as jovens gerações, que, pela falta de referências, muitas vezes se sentem mais atraídas pela segurança da doutrina e por caminhos idealizados de um passado de neocristandade. Celebrar os nove anos de seu pontificado, quase no mesmo dia em que se comemora a festa do santo que fez da maior glória de Deus a divisa de sua espiritualidade, compreendendo a maior glória como identificação com o Cristo pobre e servidor, é um motivo de alegria, mas também um apelo, a fazer ecoar sua voz, mostrando que, mais que à segurança de um passado idealizado, ela nos reconduz ao frescor do Evangelho do reino, do Nazareno, cuja glória se manifestou justamente no caminho que o conduziu à morte e morte de cruz.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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