Geraldo Luiz De Mori, SJ
“O verdadeiro teólogo ora” (Evágrio, o Pôntico)
Embora pouco conhecido de quem não é da área, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) nº 2.988/2021, que que autoriza “o aproveitamento de estudos e convalidação de títulos de cursos livres de Teologia, na forma do regulamento, para obtenção de título de Bacharel em Teologia”. Esse PL, que tem o apoio de grande parte de parlamentares da bancada evangélica, tem sido questionado por várias entidades da sociedade civil, dentre as quais a Associação Nacional de Educação Católica (ANEC). A própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), através de uma carta enviada por sua Presidência à Câmara dos Deputados, no dia 03/12/2024, questiona o modo como tem tramitado esse Projeto, que desrespeita uma série de princípios da Educação nacional.
Para compreender o que está em jogo nesse PL, é importante resgatar, de modo breve, os debates que levaram à Resolução CNE/CES nº 4. De 16/09/2016, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de graduação em Teologia. A primeira coisa importante a ser recordada é que com o início do período republicano, o regime de separação entre Igreja e Estado fez com que a teologia não fosse reconhecida como disciplina acadêmica pelas instâncias reguladoras do Ministério da Educação (MEC). Essa situação se manteve inalterada durante quase cem anos, com algumas exceções, como a do reconhecimento, por Darcy Ribeiro, de um curso de teologia na Universidade Nacional de Brasília (UNB), assim que ela foi inaugurada na década de 1960, ou o reconhecimento da teologia na Universidade Federal do Piauí (UFPI), na década de 1980. Durante todo esse período, a teologia sempre foi ensinada em seminários e faculdades eclesiásticas, ligadas à Igreja católica ou às igrejas protestantes. Na década de 1990, algumas instituições eclesiásticas criaram cursos de mestrado e solicitaram seu reconhecimento junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão vinculado ao MEC que regulamenta a pós-graduação no Brasil. Vários desses cursos foram então credenciados e reconhecidos, formando, junto com os cursos de Ciências da Religião, uma subárea da Filosofia para efeitos de avaliação e reconhecimento. No final da década de 1990, a Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo, RS, que era uma das instituições com mestrado e doutorado reconhecido pela CAPES, solicitou o credenciamento de seu curso de bacharelado junto ao órgão do MEC responsável. Várias instituições começaram a fazer o mesmo e o MEC iniciou uma série de consultas e discussões, que levaram à elaboração das DCN aprovadas em 2016. Naquela ocasião, foi estipulado um prazo para que as instituições que ofereceram cursos livres até então pudessem, com complementação, fazer aproveitamento de parte dos créditos cursados. Desde então não é mais possível reconhecer diplomas de cursos livres.
O que o PL propõe não é reabrir o prazo para as instituições reconhecidas possam de novo fazer o aproveitamento de créditos realizados em instituições livres, mas reconhecer, com alguma complementação, diplomas de muitos cursos livres presentes pelo país afora, grande parte dos quais oferecidos em escolas de teologia ligadas a igrejas e sem nenhum tipo de regularização, como é o caso para todo tipo de curso feito no país.
Esse PL tem tramitado lentamente na Câmara dos Deputados, tendo tido avanços significativos nos últimos meses. Várias instituições têm se pronunciado contra, não porque sejam contra a teologia, ou porque não queiram que outros cursos sejam reconhecidos. Pelo contrário, a abertura de novos cursos não está vedada no MEC. O que é necessário levar em conta são as normas próprias para cada curso de graduação, assegurando que sejam observadas as regras estabelecidas para todo diploma acadêmico.
Uma consequência da possível aprovação do PL é que os portadores dos diplomas obtidos por essa via podem, com alguma complementação, ser habilitados para o ensino de religião nas escolas, e muitas vezes os cursos que fizeram tinha um caráter mais catequético, dogmático e, em muitos casos, fundamentalista, não assegurando a formação para o convívio com as diversas religiões e confissões que se encontram nas várias escolas.
Para além dessa discussão de caráter legal e político, é importante resgatar o que é vivido em muitos percursos teológicos propostos no país, tanto em ambientes mais acadêmicos quanto em ambientes mais pastorais. No meio católico, por exemplo, há uma diversidade de ofertas nos dois tipos de ambientes. Há cursos de bacharelado reconhecidos pelo MEC, e cursos de mestrado e doutorado, reconhecidos pela CAPES. Ambos são avaliados periodicamente por instâncias do governo, sem contar que também seguem as normas estabelecidas pela Santa Sé para faculdades eclesiásticas. Alguns cursos de bacharelado são oferecidos na modalidade a distância, sendo também avaliados pelo MEC. Outras ofertas de formação, de vários tipos, são oferecidas, seja por instituições acadêmicas, seja por dioceses, paróquias e, nos últimos anos, por movimentos e pessoas, algumas delas com grande presença em certos meios eclesiais. Esse tipo de oferta, certamente, não tem preocupação acadêmica, embora, em muitos casos, sejam sérios e oferecem um grande serviço à compreensão do que é a fé cristã em linguagem acessível. Há muitos casos de propostas de caráter fundamentalista, com um perfil de “doutrinação”, não ajudando as pessoas a criarem uma consciência do que é o conteúdo da fé, mas insistindo em doutrinas, muitas vezes descontextualizadas, criando fanatismo.
Por que é importante esse tipo de informação? Em geral, a sociedade atual está tão acelerada, que a maioria das pessoas quer respostas rápidas, não tendo paciência para buscar e fazer o próprio caminho. As “receitas prontas” para muitos problemas no campo religioso vão se revestindo de um caráter mágico, devocionista, que tende a criar “seguidores/as” de “influenciadores/as” e não tanto pessoas que fazem um caminho. Ser seguidor desse tipo é o contrário do “seguimento” proposto por Jesus. Por sinal, Jesus não tinha nenhuma dificuldade de convidar seus discípulos e a multidão a ousar ir mais longe. Ele escandalizava e tirava as pessoas de sua zona de conforto, levando-as a se perguntarem sobre o que de fato era o mais fundamental. A fé cristã, aprofundada pela teologia, não oferece certezas dogmáticas, que levam muitas vezes as pessoas a aderirem fanaticamente a certas propostas que são o contrário mesmo do que propôs Jesus. A teologia, sobretudo a teologia proposta para ser aprofundada na caminhada dos fiéis que querem conhecer melhor o que creem, deve ser um caminho que conduz a cada vez mais encontrar-se com Deus, a descobrir o que são as próprias perguntas existenciais, a viver um caminho de sabedoria, que ilumina a pessoa em momentos de dificuldades e provação.
A carta aos hebreus tem um versículo muito bonito que pode iluminar o que é o percurso da teologia. Segundo o texto, Jesus, “por um caminho novo e vivo que nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo” (Hb 10,20), fez-nos aceder ao santuário. A teologia quer fazer quem a percorre trilhar esse caminho novo e vivo, que não confirma opiniões e ideologias, mas tira a pessoa da zona de conforto e a lança na aventura de descobrir que ela mesma é chamada a trilhar o caminho feito pelo seu mestre. Como Moisés, que desejava que todo o povo fosse profeta (Nm 11,19), talvez também hoje, mais do que nunca, seria necessário que todo o povo fosse teólogo, seguindo o caminho novo e vivo que seu Senhor lhe abriu, não se deixando enganar por falsos profetas e falsos teólogos/as.
Geraldo Luiz de Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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