Pesquisar
Close this search box.

A memória dos fiéis defuntos no Mistério da comunhão dos santos

advanced divider

Sinivaldo S. Tavares, OFM

“Olho algum jamais viu; ninguém pode explicar!”

 

Celebramos, nestes dias, duas recorrências litúrgicas: a memória dos fiéis defuntos e a solenidade de todos os santos e santas. Gostaríamos, a propósito, de salientar a intrínseca relação de reciprocidade que existe entre ambas, pois, de fato, a memória viva dos fiéis defuntos pressupõe a fé no mistério da comunhão dos santos.

O Concílio Vaticano II (1962-1965), em sua Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen gentium, reabilitou a fé na comunhão dos santos e santas, salientando sua pertinência e relevância no tocante à eclesiologia de comunhão, nota distintiva da eclesiologia conciliar. Com efeito, a comunhão oferecida gratuitamente em Jesus Cristo, e que culminou em seu mistério pascal, alcança-nos com tamanha intensidade a ponto de abraçar a totalidade dos seres humanos para além de toda e qualquer separação, indo além inclusive dos abismos mais recônditos da morte. Por isso o texto conciliar fala da comunhão dos santos que se revela na efetiva comunhão entre a igreja ainda peregrina neste mundo e a igreja triunfante, ou seja, a comunidade daqueles e daquelas que nos precederam na morte e que gozam, já no presente momento, da plenitude de vida junto do Pai.

Lemos em um dos prefácios próprios da Missa dos fiéis defuntos: “Ó Pai, para os que creem em Vós, a vida não é tirada; mas transformada. E desfeita esta nossa habitação terrestre, nos é dado nos céus, um corpo imperecível”. Essa é propriamente a esperança que sustenta as comunidades eclesiais ao longo de seu longo itinerário histórico. Por essa razão, fazemos memória de nossos irmãos e irmãos defuntos e não apenas nos limitamos a recordar-lhes ou simplesmente a se lembrar deles com saudades. A vida deles e delas foi transformada, não lhes foi tirada. O fato que eles não participem mais fisicamente de nosso convívio histórico não significa que a vida deles tenha sido extinta. Eles vivem junto de Deus e, portanto, estão ainda mais próximos de nós. Pois, nossa fé nos diz que morremos para ressuscitar; não vivemos para morrer, como insistem alguns.

Segundo nossa mais genuína profissão de fé, proclamamos, de forma contundente, “Creio na ressurreição da carne!”. Qual o sentido dessa profissão de fé transmitida mediante o testemunho vital e ininterrupto de comunidades cristãs desde os apóstolos até os dias que correm? O sentido da “ressurreição da carne”, segundo nos parece, seria melhor compreendido mediante a explicitação

de suas três dimensões intrínsecas: 1) creio na ressurreição do corpo, concebido como a existência histórico-biográfica de cada um(a) de nós; 2) creio na reconciliação da história, compreendida como transformação do mundo em que vivemos; 3) creio na transfiguração da inteira realidade criada, nossa casa comum.

Cada pessoa é destinada a participar da própria vida da Trindade Santa. Esta é a vocação primeira à qual somos todos chamados. Paulo convida-nos a conceber a própria existência como dom e vocação: predestinados pelo Pai, no vigor de seu Espírito, a sermos filhos e filhas no Filho. A consciência de termos sido predestinados à filiação divina provoca-nos à consciência de que a existência seja acolhida como incumbência e resposta: o Espírito nos conforma a Cristo a fim de que nos tornemos filhos e filhas no Filho.

Paulo conclama-nos, todavia, a nos empenharmos no processo de nossa salvação gratuitamente recebida. Por exprimir justamente a incondicional misericórdia de Deus, a salvação carrega em seu próprio bojo os frutos distintivos da nossa participação. Na sua liberdade, Deus quer contar conosco. Não quer realizar nada sozinho. Ele conta com a nossa participação, embora isso não comprometa minimamente o caráter gratuito de sua iniciativa e de seus desígnios. Ser filho de Deus significa deixar-se conduzir pelo Espírito, pois é Ele, na verdade, aquele que, derramado em nossos corações, dá testemunho ao nosso espírito de sermos filhos de Deus. O deixar-se conduzir pelo Espírito se exprime numa singular ousadia, nota característica dos filhos e filhas de Deus. A solidariedade para com Jesus Cristo será a única garantia da verdadeira fisionomia do discípulo: filho de Deus, irmão de Jesus Cristo e templo do Espírito Santo.

É de dentro e a partir do casulo de nosso corpo biológico, através dos inúmeros fios que nos ligam à trama histórica da vida e aos meandros sutis da materialidade do cosmos, que explicitamos com lento vagar nossa singularidade. A ressurreição, nesse sentido, constitui para cada pessoa o momento de seu desabrochar para a vida verdadeira e plena que nos é prometida. Promessa que esperamos realizar-se um dia. Naturalmente que nenhuma pessoa atingirá a plenitude da vida enquanto essa mesma plenitude não for partilhada pelo conjunto de outras pessoas e, ousaria dizer, da humanidade toda, na plenitude de todo o tempo. Ninguém ressuscita sozinho, posto que a vida não se dá de maneira desconectada da trama histórica e material da vida. A vida se dá sempre como uma trama bem intrincada de relações.

Creio na transformação da história e na transfiguração da criação. A genuína fé cristã professa que também a História e o Cosmos estão destinados à

salvação. Pois, de fato, a ressurreição de Jesus e a efusão do Espírito Santo constituem as primícias dos tempos derradeiros e definitivos. Ao professar que o Espírito, além de nos conformar a Cristo, realiza o lento e oneroso processo de cristificação da história e do cosmos, as comunidades cristãs das origens não fazem outra coisa que levar às últimas conseqüências o princípio que se encontra na raiz mesma da experiência religiosa bíblica. Se Deus se revela na história como libertador e salvador, como garante e sustentáculo da vida nas suas mais distintas expressões, é porque, com toda certeza, ele se encontra “no princípio” como sua origem e razão de ser. E, porque se encontra “no princípio”, Ele também se fará presente “no fim dos tempos” como o recapitulador e plenificador da história e do cosmos todo.

Trata-se da segunda e definitiva vinda de Cristo, do seu retorno glorioso entre os seus e da tão esperada parusia. Tudo isso será realizado pelo Pai, na plenitude dos tempos, no vigor do seu Espírito, que é o selo da nossa herança futura. Será o Espírito Santo, na verdade, o grande inspirador e mentor dos tempos derradeiros e definitivos. A parusia, entendida como cumprimento de todas as promessas nestes tempos derradeiros, será caracterizada pela vinda gloriosa de Cristo. Mas isso só se dará depois que o Espírito Santo tiver completado a sua obra de conformação de todas as criaturas a Cristo e, portanto, de cristificação da história e do cosmos. Naquele dia, Cristo reconhecerá este mundo como seu e, enfim, tomará posse do mesmo submetendo a si todas as criaturas. Somente depois de tê-lo assumido como seu, Ele restituirá o mundo a Deus, seu Pai.

Naquele dia, o Pai, aquele que dá o Espírito sem medida, tornando-nos filhos no Filho, se revelará plenamente como o princípio sem princípio e, portanto, a origem de tudo e a plenitude e meta da história e da criação toda: “Está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, darei gratuitamente água da fonte da vida. Quem vencer herdará estas coisas e serei seu Deus e ele será meu filho” (Ap 21,6-7).

 

Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

...