Alfredo Sampaio Costa SJ
Qual o lugar da Palavra nos Exercícios Espirituais? Neste mês em que procuramos aprofundar o papel da Sagrada Escritura na nossa vida, reli um texto que sempre me trouxe boas provocações, escrito por Mario López Barrio sobre como os Exercícios Espirituais falam da Bíblia (La Parola nel dinamismo ignaziano. L’ispirazione bíblica degli Esercizi, Pontificio Istituto Biblico, Roma 2015). Destaco algumas questões que possam nos incentivar ainda mais a oração e a leitura da Sagrada Escritura. Sem pretensão de ser exaustivos, apontaremos algumas indicações fundamentais para a nossa aproximação existencial com a Palavra.
A primeira consideração toca o âmbito em que se coloca a Palavra nos Exercícios. Não no âmbito da atividade litúrgico-sacramental da Igreja, embora as celebrações sacramentais pautem o andamento da experiência. Tampouco nos Exercícios se trata de uma ordinária pregação catequética e homilética. A Palavra é tocada, vivenciada e confrontada no momento mais delicado, aquele pessoal, quando todo o caminho da Palavra chega ao coração mesmo da pessoa humana. Ora, é sobre esse momento que aquele que dá os Exercícios ou acompanha o exercitante é chamado a concentrar a sua atenção, já nos chamava a atenção para isso o Cardeal Martini (no seu texto “La Parola di Dio e gli Esercizi Spirituali”, 1971, 4). A oração e, consequentemente, o acompanhamento espiritual, girará ordinariamente em torno do impacto (positivo ou negativo) da Palavra proclamada na vida de cada pessoa.
Um outro campo que aponta Mario Barrios de contato e diálogo entre a Bíblia e os Exercícios é o da História da Salvação, isto é, qual o projeto salvífico de Deus para a humanidade. Nos Exercícios Espirituais a pessoa procura aplicar essa história a si mesma, para encontrar o seu lugar próprio na Igreja e na humanidade e se tornar, assim, disponível ao grande projeto de Deus.
Entendida assim a Palavra, qual a sua relação com os Exercícios Espirituais? Para encontrar tal relação, necessitamos de um ambiente apropriado. Ora, os Exercícios nos proporcionam exatamente um clima adequado para que a Palavra possa se manifestar. Assim, poderíamos dizer, com Mario López Barrios, que os Exercícios Espirituais não são Palavra de Deus, mas sim a atmosfera na qual a Palavra pode se manifestar. E se a Palavra de Deus é a realidade essencial da vida, os Exercícios ajudam a pessoa a se dispor a receber tal realidade, a deixar que o Espírito realize sua obra em nós, de modo particular a sua principal atividade, isto é, favorecer a escuta da Palavra.
Atitudes de fundo que colaboram à escuta da Palavra: Tal clima consiste em primeiro lugar na pobreza de espírito, condição indispensável para escutar a Palavra. Quem tem o coração e a inteligência repletas de apelos, inquietações, projetos autorreferenciais, dificilmente poderá encontrar um espaço para deixar-se penetrar pela Palavra. É preciso desejar e buscar se esvaziar de muitas coisas, pessoas, ideias etc. para ser capaz de escutar o que a Palavra tem a nos dizer. Aí se coloca a proposta dos Exercícios de retirar-se, de buscar o silêncio, pois muitas são as vozes que gritam, o mundo é repleto de ruído e se não calarmos o Senhor pode até falar, mas dificilmente será escutado e, ainda mais, entenderemos o que Ele quer nos dizer.
A fim de que a Palavra de Deus seja eficaz em mim é necessária uma atitude fundamental ativa, isto é, tomar consciência da Palavra de Deus como força ativa em todas as suas modalidades expressivas, a saber: luz, perdão, lei, juízo etc. Sempre, diante da Palavra rezada e discernida, temos que nos perguntar a que aquela Palavra nos convoca, julga, transforma, toca o chão de nossa vida.
Alguns autores compararam a Sagrada Escritura com uma floresta densa ou um oceano onde podemos encontrar tantas considerações. Para não nos perdermos, necessitamos de uma chave de leitura e interpretação. Inácio encontrou uma e é aquela que ele nos propõe nos Exercícios: a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Este que é o centro dos Exercícios Espirituais e de toda a Sagrada Escritura, é a escolha que nos faz Inácio. No centro da sua intuição está o mistério pascal e o Cristo sobretudo humilde e humilhado. O Cristo humilhado conduz à escolha da humildade com Cristo.
Este parece ser, desde o princípio, o aspecto que governa sutilmente as meditações inacianas. É uma chave muito rica, que permite organizar uma leitura de toda a Bíblia e de cada parte dela, que impacta a pessoa no profundo de suas decisões e não a deixa divagar. Inácio escolhe decididamente esta chave de leitura, a vida de Cristo, no esvaziar-se de seus privilégios, das suas prerrogativas divinas, para vir ao nosso encontro na humildade (na linha de Fl 2, 5-11).
Outro elemento importante a considerar é que, quando falamos dos Exercícios de Santo Inácio, referimo-nos a uma experiência. É importante destacar isso. Não se trata de um curso teórico nem uma exposição doutrinal. Os Exercícios são, de fato, uma experiência, e uma experiência bíblica, porque nascem da meditação da Sagrada Escritura. É verdade que se pode cair, como na realidade às vezes acontece, no perigo de fazer deles uma simples experiência de piedade, quando se propõem os pontos sem um fundamento científico. Para evitar isso e dar aos Exercícios Espirituais a sua justa expressão, é decisivo levar o exercitante a um contato com Aquele que é o autor principal da Sagrada Escritura. A fé cristã não pode se reduzir a um simples sentimento religioso pessoal. Trata-se da revelação na figura histórica de Jesus Cristo na comunidade eclesial.
A experiência de Inácio é experiência de fé cristã bíblica, como afirma G. Cusson (Antropologia bíblica ed Esercizi Spirituali, 7). Não entenderíamos o que Santo Inácio propõe sem esse contexto bíblico de fundo. Por exemplo: a descoberta existencial do Deus misericordioso do Evangelho, que justifica a pessoa humana pelo amor e não pelo seu esforço pessoal, significa uma das experiências fundamentais do seu crescimento espiritual.
Sem dúvida o encontro com Jesus Cristo constitui, do ponto de vista biográfico, o núcleo do processo de conversão de Inácio. Não se trata de um mero conhecimento do mistério de Cristo, mas sobretudo de “um experimentar em toda sua pessoa de modo tão profundo a ponto de lhe dar uma segurança inquebrantável para testemunhar com liberdade a mensagem de Cristo” (R. García Mateo, “Genesi spirituale e testuale degli Esercizi”, in San Ignazio di Loyola, Esercizi Spirituali. Testi complementari. A cura di H. Alphonso, Roma 2000, 41-42).
Para entender o uso inaciano da Sagrada Escritura será de ajuda ter presente o horizonte teológico e histórico em que nascem os Exercícios, horizonte distinto do nosso. Com respeito à tradição do seu tempo, Inácio faz uma seleção particular de textos da Escritura, conhecidos nos Exercícios como “os mistérios da vida de Cristo” (EE 262-312), tomados da “Vita Christi” de Ludolfo de Saxônia. De fato, esta obra constitui uma das fontes primeiras da obra inaciana e o comentário mais genuíno a esta síntese de citações evangélicas com que Inácio delineia os mistérios da vida de Cristo. Importante dizer que esta obra não se trata de uma consideração devocional da vida de Jesus, mas de uma exposição de todo o mistério de Cristo, isto é, da história da salvação, seguindo as narrativas dos evangelhos, com abundantes comentários, sobretudo da patrística e da mística. Diante desta riqueza de material, surpreende de modo particular a extrema parcimônia dos mistérios da vida de Cristo nos Exercícios Espirituais. Em sintonia com o seu método de “breve e sumária declaração” (EE 2), exprime muito austeramente, na maioria dos casos com citações dos evangelhos, somente os momentos fundamentais de cada mistério. Assim, o exercitante se esforça na contemplação por sua conta.
O ser humano que emerge desta experiência bíblica possui as seguintes características:
– A dimensão experiencial deverá ter a primazia: experiência vivida, interior e que abrange a pessoa por inteiro.
– A tomada de consciência de quem somos e para onde iremos é fruto de um caminho, na maioria das vezes longo e repleto de espinhos.
– A perspectiva de futuro: é preciso olhar para a frente e buscar avançar, sem nos deixar paralisar por situações de pecado experimentadas.
– As exigências de renovação – o confronto com a Palavra provoca a exigência de uma ruptura com o passado. Deus atrai, é preciso partir, mesmo que, para isso, tenhamos que abandonar nossas seguranças. A fé perde suas seguranças; já na estrada de um futuro prometedor, a fé por vezes perde suas seguranças, envolvida no mistério, na obscuridade.
– A experiência de uma transcendência – o que é específico de uma antropologia bíblica é uma experiência progressiva de Deus transcendente que modifica profundamente o sentido das realidades terrestres vividas pela pessoa humana.
A modo de conclusão
A Bíblia e os Exercícios coincidem sobre o tema do plano de Deus, que sempre buscou se comunicar à sua criatura em uma aliança de amor. Encontramos em ambos as atitudes religiosas fundamentais: adoração, louvor e serviço diante de Deus; senso profundo do Deus vivo, senso do pecado e do perdão, esperança no Redentor, conversão do coração.
Encontramos, enfim, em ambos a escolha que Deus realiza e que chegamos a conhecer através do discernimento dos espíritos. O povo eleito, assim como o exercitante, deverá confirmar sua escolha. Será preciso discernir entre a voz divina e a do adversário. A pessoa deverá discernir em meio ao mistério, a voz de Deus e a do adversário. Aventura fascinante e exigente!
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
18/09/2025

Foto: Aaron Burden /Unsplash