Bruno Pettersen
Recentemente, estava lendo o livro “New York 2140” do autor norte-americano Kim Stanley Robinson (1952 – ) que conta a história de uma Nova Iorque imaginária. Neste futuro, devido ao aquecimento global, as calotas polares estavam no fim do derretimento, e por consequência, o nível do mar subiu o suficiente para cobrir toda a parte sul de Manhattan. O livro apresenta uma narrativa muito interessante, com uma multidão de personagens vivendo nesse novo contexto de mundo. No entanto, um dos aspectos centrais da obra e que mais me chamou atenção, é como na sua narrativa o sistema financeiro se adaptou à crise ambiental e continua a buscar o lucro independentemente dos desastres ambientais que esse mesmo sistema econômico ajudou a criar.
Em um dos capítulos do livro, Robinson apresenta como epígrafe um pequeno trecho do filósofo francês Giles Deleuze (1925-1995) que nos ajuda a entender esse aspecto do ambiente econômico e sua relação com a nossa vida. Deleuze diz assim:
Talvez a fala e a comunicação tenham sido corrompidas. Elas são completamente permeadas pelo dinheiro – e não por acidente, mas por sua própria natureza. Temos que sequestrar a fala. Criar sempre foi algo diferente de comunicar. A chave pode ser criar vacúolos de não-comunicação, disjuntores, para que possamos escapar do controle.
Esse texto me chamou a atenção no livro de Robinson. A ideia é que o dinheiro participa de forma inviolável das nossas vidas a ponto de a própria linguagem ter sido contaminada pela fala capitalista. Antes de pensar de forma redutora apenas que o capitalismo é nocivo – o que certamente pode ser defendido – o que me incomodou foi a ideia de que a forma de reflexão que fazemos hoje é estruturada ao redor de uma lógica financeira. As nossas reflexões são medidas por aspectos quantitativos e são sempre analisadas a partir dos “produtos” gerados.
Um jovem brasileiro que prestará a prova do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio – precisará se submeter a uma prova de redação. Embora os temas da redação sejam interessantes e relevantes à sociedade, o jovem é estimulado pela concorrência existente na prova apenas a repetir um determinado formato de texto. Qualquer reflexão que escape exatamente daquilo que é esperado pela prova será recusado. Essa reflexão padronizada então é quantificada não pela qualidade da reflexão, mas apenas por cumprir determinados aspectos. Longe de ser culpa dos corretores que chegam a corrigir um número obsceno de redações por dia, a culpa é de um sistema de avaliação das redações meramente quantitativo, que premia a repetição de formatos e a adequação ao que é esperado. Qualquer inovação, peculiaridade do aluno ou formato de texto que não é recomendado, será anulado.
Não fica melhor na realidade da pesquisa acadêmica. Um pesquisador de qualquer área do saber é medido a partir da qualidade das revistas em que produz. Artigos são classificados a partir de critérios quantitativos, como o número de citações. Usamos a estatística para pensar a performance de uma determinada ideia. Qualquer artigo que não siga o formato esperado pela revista, ou que não siga os padrões de reflexão que a área de pesquisa exige, não será aceito para a publicação.
É importante compreender que estes critérios avaliativos são hoje primariamente ordenados pela lógica financeira, ideias como “nota 1000”, “número de citações”, “bolsa de produtividade” e “volume de produção” são ferramentas de avaliação daquilo que será aceito ou não como a produção recomendada. Há um certo atrativo em se pensar os aspectos econômicos como a prova de sucesso, pois eles podem ser claramente quantificados, por isso temos critérios como “produção” e “produtividade”.
Se as nossas reflexões são melhores do que aquelas do século XVIII ou outro, isso será medido por critérios quantitativos dentro da lógica de produção capitalista. Nesse fundamento, a própria linguagem, a força primeira ordenadora da mente humana, é forçada a se adaptar a estes critérios ou será recusada. Críticos de cinema e de literatura são forçados a se adaptar à lógica numérica que atravessa tudo o que eles escrevem ou falam, sendo estimulados a quantificar seu gosto por algo. Médicos devem atender pacientes em prazos de tempo regulado pelos planos de saúde. Uma foto é avaliada pelo número de likes que ela recebe.
Dito simplesmente: Não temos mais uma maneira de pensar que escape dessa lógica quantificadora, representada bem pelo dinheiro. Todo nosso pensamento, nossa maneira de pensar, é primariamente ordenada a partir desse critério quantitativo.
Esse modelo único de pensar não será rompido enquanto nós próprios, aqueles que dedicam a sua vida a escrever, a criar e a pensar continuarem através desse corte intelectual. Tal como no romance de Stanley Robinson, é provável que o dinheiro continue a corromper toda a reflexão, mesmo que o próprio desafio de refletir seja destruído no processo.
Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE