Pe. Jaldemir Vitório SJ
Um tópico importante do texto-base da Campanha da Fraternidade, deste ano, diz respeito à chamada síndrome de Caim (nº 53-67). A globalização da indiferença, fortemente denunciada pelo Papa Francisco, tem desdobramentos aterradores. Diz o texto: “a diferença passou a ser vista como inimizade e, mais ainda, como ameaça. O adversário virou inimigo” (nº 56). A síndrome de Caim, “à semelhança de uma praga nas plantações, chega sorrateiramente e, aos poucos, toma conta de tudo, deixando um rastro de devastação e morte” (nº 62).
O pano de fundo bíblico dessa “síndrome” é bem conhecido pelo relato do Livro do Gênesis 4,1-16. Interessa-nos, aqui, a cínica resposta de Caim à interpelação de Deus: “o Senhor disse a Caim: ‘onde está teu irmão Abel?’ Disse: ‘não sei. Porventura eu sou guarda do meu irmão?” (v. 9). A palavra “guarda” tem uma riqueza de sentidos. Pode ser entendida como “cuidador”, “protetor”, “amparador”, “suporte”, “custódio” etc. São todas formas de se entender as incumbências que temos no tocante ao nosso próximo. Entretanto, Caim tem a ousadia de se eximir, diante de Deus, de qualquer responsabilidade quanto ao irmão que acabara de assassinar. Aqui está o motivo pelo qual tirou a vida de Abel, num fratricídio bárbaro, sem dó nem piedade. Quem não se compromete com o próximo, quem quer que seja, sem escrúpulo, haverá de lhe tirar a vida, até o extremo de eliminá-lo fisicamente, como aconteceu com Caim. São muitas as maneiras de aniquilar o outro, como no racismo, na exclusão e na marginalização, na calúnia e na difamação, nas fake news, na escravização, na exploração, na humilhação e em inumeráveis outros modos. As pessoas de boa-vontade, movidas pela compaixão, não terão dificuldade de reconhecer tudo isso como sintomas da síndrome de Caim, em nossa Igreja e em nossa Sociedade.
Aqui, porém, gostaria de chamar a atenção para a síndrome de Caim embutida, de maneira sub-reptícia, na pregação de certas lideranças religiosas, que se consideram cristãs, para quem, o próximo, de modo especial, os mais pobres e marginalizados estão fora dos horizontes de seu interesse e preocupação, como se tivessem sido assassinados. Sim, os preferidos de Deus não lhes dizem respeito! Caso alguém defenda a causa deles e faça algo em seu favor, receberá a pecha de “comunista” ou adjetivos semelhantes. Mais que nunca, torna-se urgentíssimo passar tais falsos profetas, que são muitos, pelo crivo do Evangelho e do projeto de Jesus de Nazaré, de modo a denunciar a síndrome de Caim escondida em suas pregações.
O foco dos falsos missionários cristãos, em geral, se volta para questões irrelevantes, em termos da fé, ao apelarem para uma equivocada fidelidade à tradição, quase sempre referida a pontos isolados da bimilenar caminhada eclesial da Palavra do Evangelho. A leitura descontextualizada da Tradição dá-lhes autoridade para insistir em práticas anacrônicas e lhes atribuir um valor absoluto, chegando a se levantarem contra quem pensa diferente, até mesmo, o Papa Francisco, acusado de “herege” e merecedor de excomunhão latae sententiae, isto é, sem necessidade de processo. Para eles, por exemplo, o Papa incorreu em excomunhão pelo simples fato de afirmar e testemunhar que “todos, todos, todos” devem ser acolhidos pela Igreja, como irmãos e irmãs amados, deixando de lado os moralismos e os legalismos que excluem e marginalizam. Entre esses, estariam os católicos “casados em situação irregular”, dignos de serem acolhidos como o pai acolheu o filho pródigo de volta à casa paterna (Lc 15,11-32). Quanto escarcéu inútil, contra quem se mostra, em tudo, fiel ao Deus de Jesus de Nazaré, ao Deus da tradição bíblica. Afinal, o Papa Francisco cuida dos Abel a quem os Caim de nossa Igreja insistem em matar!
Esses senhores, que se consideram “donos da verdade”, embrenham-se por um caminho perigoso que os afasta do Deus de Abel. Em Gn 4,10, o Senhor dirige a Caim uma terrível acusação: “da terra, a voz do sangue do teu irmão está gritando por mim”. Quiçá muita gente leve a vida fazendo o mal ao próximo, cujo sangue clama aos céus, com a guarida de certos pregadores “cristãos” que, com suas falsas profecias, não os alerta para as perversidades que cometem. Pensemos nos corruptos “cristãos” que insistem em surrupiar o dinheiro público destinado a programas sociais, infraestruturas urbanísticas e de saneamento básico, verbas para a saúde e a educação, das quais dependem milhões de vidas humanas. Tudo isso sem qualquer peso na consciência. A fé jamais os confronta com crianças que morrem por desnutrição, com hospitais de pronto atendimento abarrotados de doentes em estado desesperador, implorando por atendimento, com famílias vivendo em condições sub-humanas por não terem acesso a uma moradia digna, com populações indígenas sendo dizimadas pela ganância do agronegócio, do garimpo ilegal e da ação do narcotráfico, com presidiários vivendo em condições degradantes ou com milhares de vítimas de abusos de todo tipo.
A síndrome de Caim, em sua vertente religiosa, revela-se mormente perversa, por estar embutida nas palavras enérgicas de quem se julga falar em nome de Deus e respalda suas pregações com versículos bíblicos para dar autoridade divina às suas pregações absurdas, como no caso da teologia da prosperidade, da teologia do domínio, teologia da confissão positiva, certas teologias pentecostais, dentre tantas. Toda atenção é pouca em face dos discursos inflamados de indivíduos que se proclamam conservadores, que insistem em bater na tecla do moralismo e do legalismo, que se bandearam para o devocionalismo piegas e descolado do Evangelho, que se embrenham num sectarismo intolerante, gerador de conflitos e divisão com quem não segue a cartilha deles, que anunciam uma salvação à margem da compaixão e da acolhida misericordiosa dos irmãos e das irmãs carentes de cuidado e proteção. Enfim, que viram as costas para os milhões de Abel do nosso mundo, cujo sangue, como o do personagem bíblico, clama a Deus por justiça, vítimas de um persistente fratricídio cruel.
Será preciso muito discernimento para não se deixar enganar pela fumaça dos discursos religiosos com o (mau)cheiro do sacrifício de Caim. Pessoas ingênuas pensam que, pelo mero fato de falar de Deus, um discurso tem o respaldo divino. E acabam dando ouvido a charlatões religiosos de todas as cores e gostos. Um critério para identificar se são verdadeiros ou falsos homens e mulheres de Deus consiste em levantar algumas questões: os pobres e os sofredores deste mundo são considerados naquilo que falam? Estão preocupados com os que são vítimas da maldade e da indiferença de um sistema que marginaliza e descarta? Que motivos me dão para lutar pelo mundo querido por Deus, sem exclusões, sem injustiça, sem exploração? Enfim, dando-lhes ouvidos, estarei em condições de fazer frente à síndrome de Caim, cada vez mais enraizada em nossa sociedade, pela qual também posso ser contaminado?
Que a maldição do fratricida Caim (Gn 4,11) não recaia sobre nós. O único muro de proteção consiste no cultivo da amizade social, como propõe a Campanha da Fraternidade, expressa como cuidado com os mais fragilizados de nosso mundo, os Abel contemporâneos, a quem nos cabe defender e amparar, em nome da fé.
Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE