Marília Murta de Almeida
O horizonte aberto do mar sempre atraiu a imaginação humana. As viagens de Ulisses na antiga Grécia, as navegações ibéricas em busca do novo mundo, assim como as travessias dos navegadores contemporâneos, evocam imagens de aventura, conquista, alargamento do mundo e da consciência. Atravessar o mar parece significar a passagem por provas e desafios e o encontro com uma nova realidade, seja no mundo ou na interioridade.
Todavia, em solo brasileiro somos marcados por travessias do mar que inauguraram realidades que nos atingem dolorosamente. A primeira travessia portuguesa que proporcionou o encontro dos povos da Europa com os povos que aqui viviam deram início à nossa história colonial. Ainda no início dessa história, as travessias entre a África e a costa brasileira nos colocaram diante da nossa marca mais profunda, que ainda hoje sangra em quem quer que se permita vê-la. Os versos de Castro Alves em seu poema tornado clássico, mas talvez ainda sequer compreendido naquilo de mais radical que contém, descreve o que teriam sidos os chamados navios negreiros. Leiamos um pequeno trecho para não nos esquivarmos da dor:
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
Pequeno lance das diversas cenas que o poeta descreve em lamento e indignação. Mulheres e homens negros arrancados de suas vidas e trazidos à força para serem escravizados por séculos. Aproximando-se do final do poema, Castro Alves evoca um Deus – “Senhor Deus dos desgraçados” – para que ele confirme a veracidade do horror ali descrito. Anseia pela possibilidade de que tudo aquilo não passe de um delírio ou que possa ser magicamente apagado nas águas do mar.
Depois deste momento de profundo lamento o poema chega ao último canto. E aí encontramos a imagem clara da nação e do povo brasileiros. A imagem clara de nós mesmos:
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! …
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Sem nos esquivarmos a ver e compreender na carne de cada um a dor e a infâmia que nos marcam como povo e a nosso país como nação, percebo a abertura deixada pelo poeta no vislumbre da esperança prometida. “Promessas divinas” que parecem quase à beira do desaparecimento, do esvanecimento na bruma nebulosa ou na desilusão do poeta que, na conclusão de seu lamento, pede pelo fechamento dos mares para aquele que outrora os havia desbravado: “Colombo! fecha a porta dos teus mares!”. Mas o que nos resta além de abrir a porta da esperança e voltar a ver no mar o convite à travessia?
Rubem Alves, em seu O que é religião?, postula a origem das religiões na imaginação humana: “Concluímos, assim, com honestidade, que as entidades religiosas são entidades imaginárias”. São imaginárias ou imaginadas porque jamais vistas ou ouvidas diretamente. É, pois, no vislumbre das possibilidades criativas humanas, apoiados pelo convite à imaginação feito pela imagem do mar a ser atravessado, que podemos nos deixar tocar pela esperança que nos põe em alerta e, quem sabe, em ação.
Castro Alves chama pelo Deus dos desgraçados e nos inspira a chamar também por um Deus que olhe para nossa infâmia e, mais ainda, para as vítimas da nossa infâmia. Para cada pessoa negra a quem é negada a humanidade. Para cada vida negra destruída pelas consequências das travessias infames recobertas pela nossa bandeira. Que possamos imaginar – e confiar em – um Deus que não nos permita mais o empréstimo de nossa bandeira para recobrir a dor repetidamente gerada pela infâmia da violência e da desumanização nascidas da escravização.
Entretanto, imaginar o Deus não basta, ainda que ele seja o Deus libertador. É preciso ouvi-lo e segui-lo. A esperança que quase desaparece nas linhas de Castro Alves talvez tenha o poder de nos levantar e transformar em ação política no mundo o seguimento do Deus que não nos permite acorrentar e nem ser acorrentado.
A travessia do mar permanece aberta, os mares da infâmia não foram fechados, como pediu o poeta. A liberdade humana, seja imaginária ou feita ação concreta no mundo, permanece real. Nos resta desejar atravessar o mar em direção ao mundo novo prometido e pedido pelo Deus que liberta.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE