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A visão de “La Storta”, uma experiência contada a várias vozes

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Alfredo Sampaio Costa SJ

O que podemos mais desejar na vida do que “sermos colocados com Jesus Cristo”? Esse desejo ardia no coração de Inácio também, e ele confiantemente suplicava a Nossa Senhora que lhe alcançasse essa graça junto ao seu Filho! Uma vez alcançado tal dom, impossível guardá-lo somente para si, mesmo para alguém como Inácio, sempre reticente em falar de suas experiências espirituais mais profundas.

São numerosas as fontes que aludem a essa mesma lembrança, o que serve para confirmar a sua autenticidade e grande relevância. Encontramo-la no Diário Espiritual de Santo Inácio, em uma conferência de Laínez, já Geral (que é a principal testemunha segundo Inácio), em sete lembranças de Nadal (o teólogo da espiritualidade inaciana), em duas recordações de Polanco, secretário de Inácio, duas de Ribadeneira, uma de Canísio (companheiros de Inácio) e uma de autor anônimo[1].

O testemunho deixado por Inácio no seu Diário Espiritual

Através dos fragmentos das suas anotações sobre suas orações pessoais que chegaram até nós (conhecidas como “Diário Espiritual”), Inácio pôde ser conhecido nas suas profundidades espirituais. Tratando-se do único documento que temos escrito por suas mãos no segredo das suas experiências de oração, seria de esperar encontrarmos nele referências à experiência marcante de La Storta. É sumamente significativo que o único e pequeno detalhe dado por Inácio desta sua sublime experiência mística é que “Deus Pai o colocava com seu Filho”. Tão profundamente impresso no seu coração estava esse único pormenor que abarcava tudo, que sete anos depois Inácio o recordaria e anotaria no seu Diário Espiritual, no dia 23 de fevereiro de 1544. Durante os 40 dias nos quais elaborava a sua eleição sobre o ponto decisivo de que tipo de pobreza adotaria na Companhia de Jesus (cf. [Au 100]), uma forte razão a favor da mais estrita pobreza procedeu de uma íntima experiência mística da pessoa de Jesus e do desejo de segui-lo muito de perto em toda pobreza: “Indo paramentar-me, estes pensamentos foram crescendo em intensidade e me parecia uma confirmação, embora não recebesse consolações sobre isso. Parecia-me de algum modo ser obra da Santíssima Trindade que Jesus se mostrasse e fizesse sentir, acudindo-me à memória o momento em que o Pai me pôs com o Filho” (Diário Espiritual n. 67). Essa lembrança continua nos dias seguintes. A Inácio se lhe imprimiu no centro do coração a pessoa e o serviço de Jesus. Não quer outro nome nem outro chefe para o que será mais tarde a Companhia. O anotará várias vezes em seu Diário.

Testemunho de Laínez, para Inácio o testemunho mais confiável

Em uma reunião diante de mais de 200 jesuítas em Roma depois de sua eleição como segundo Geral da Companhia de Jesus, em 2 de julho de 1559, Laínez faz memória de algo que considera essencial para o futuro: o que Inácio partilhou a Fabro e a ele mesmo naquela viagem a Roma 22 anos antes:

“Vindo a Roma, passando por Sena, nosso Pai (Inácio)… tinha muitos sentimentos espirituais, e especialmente com respeito à Santíssima Eucaristia… Disse-me que lhe parecia que Deus Pai lhe imprimira no coração essas palavras: Ego ero vobis Romae propitius (Eu vos serei propício em Roma). E não sabendo o que estas palavras queriam significar, nosso pai dizia: ´Não sei o que acontecerá a nós; talvez seremos crucificados em Roma´. Logo, outra vez, disse que lhe parecia ver a Cristo com a cruz sobre os ombros, e o Pai Eterno próximo a ele que lhe dizia: ´Eu quero que tu tomes a este como teu servo”. E assim Jesus o tomava, dizendo: “Eu quero que tu nos sirvas”. E por isso, recebendo grande devoção a esse santíssimo nome, quis denominar a Congregação: a Companhia de Jesus”.

Laínez parece distinguir DOIS MOMENTOS na confidência que Inácio lhe fizera e refere palavras divinas internas e um diálogo entre o Pai e o Filho, onde aparece claro o ideal de serviço, existencialmente presente por meio de uma palavra divina dirigida a Inácio. Laínez acrescenta dois detalhes importantes ao que se lê na Autobiografia: Cristo aparece a Inácio carregando a Cruz nos ombros. Essa imagem tão significativa nos recorda que não podemos jamais nos afastar dos “crucificados do mundo”, dos descartados da sociedade. Com eles Cristo se identifica, como em Mt 25,31-46: “toda vez que fizestes isso a um destes meus irmãos menores, a mim o fizestes”.

E logo cita umas palavras de Deus Pai que parecem se imprimir no coração de Inácio: “Eu vos serei favorável em Roma”. E acrescenta o Pai ao Filho: “Eu quero que tu tomes a este por servo”. Finalmente as palavras do mesmo Jesus a Inácio, de clara ressonância trinitária: “Eu quero que tu nos sirvas”.

Lendo essas memórias tão importantes, somos convidados a recordar também as palavras que o Senhor tem dirigido a nós, as diversas ocasiões e meios através dos quais tem nos revelado que “o que mais quer é que nos coloquemos a seu serviço” e isso “nos nossos irmãos mais pequeninos”.

A interpretação de Jerônimo Nadal, intérprete autorizado do coração de Inácio

Nadal foi considerado já em seu tempo pelo próprio Inácio como quem “conhece totalmente a minha mente e possui a minha mesma autoridade” (Epp. V, 7-8) e por Polanco, primeiro secretário e historiador da Ordem, como o intérprete autêntico da mente e do espírito de Inácio.  Chama a atenção o fato que, enquanto Inácio por sua vez e depois Laínez não fazem outra coisa que narrar o acontecimento sem se deterem no seu significado, o teólogo da espiritualidade inaciana, Jerônimo Nadal, não deixa jamais de ponderar o significado da visão de La Storta para o modo de viver e de proceder de Inácio e da Companhia. Julgando as numerosas ocasiões em que Nadal recorre à visão de La Storta nas suas exortações e escritos, notamos o quanto esta experiência mística de Inácio exercia um profundo influxo na sua compreensão e síntese da espiritualidade de Inácio e da Companhia.

Muitas vezes Nadal narra o episódio tal como o recebeu de Laínez. Posteriormente discorre sobre o significado do acontecido.  Até chegar a elaborar a sua tese de que a visão de La Storta é uma graça outorgada não somente a Inácio mas, nele, a toda a Companhia de Jesus e a todos que vivem a espiritualidade inaciana. É uma espécie de tema característico que está articulado em duas frases lapidares que afirmam: “nele (Inácio) se vê a primeira forma e graça que o Senhor deu à Companhia” e “nele [Inácio] nos colocou um exemplo vivo de nosso modo de proceder”. Nas exortações de 1554 na Espanha, a sua tese está presente quando narra sobre La Storta: “Quando Deus pai o colocou com Cristo a seu serviço, disse:  ‘Ego vobiscum ero’ (Eu estarei convosco), mediante o qual claramente quis dizer que nos escolheu para sermos companheiros de Jesus. E esta é uma graça especial concedida à Companhia por Deus. Esta tese, proveniente da visão de La Storta, está, na mente de Nadal, intimamente relacionada com toda a teologia do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja.

Que possamos meditar cada um dos textos a seguir, identificando-nos com os sofrimentos de Cristo hoje, pedindo a graça de sermos solidários, compassivos e amorosos, comprometidos e empenhados com aqueles e aquelas que padecem sob o peso da Cruz.

“Por isso, temos que notar que, se bem que Cristo, ressuscitado dentre os mortos, já não morre mais, todavia Ele segue sofrendo e carregando a cruz em seus membros”. “De tudo isso [i.e., que o Pai colocou a Inácio com Cristo, seu Filho, em La Storta) deduzimos que o fundamento da nossa Companhia é Jesus Cristo crucificado, de sorte que, assim como Ele redimiu o gênero humano com a sua cruz e cada dia sofre as máximas aflições em seu Corpo Místico que é a Igreja, assim também todo aquele de nossa Companhia tenha isso presente’…” (Fontes Narrativi II, 10).

Em um mundo dividido, quebrado, onde cada dia somos confrontados com toda sorte de violência e descaso, percebemos a atualidade desta graça que, por meio de Inácio, toca igualmente os nossos corações.

“E assim [i.e. como consequência do fato que o Pai colocou a Inácio com Cristo a seu serviço] somos companheiros de Cristo Jesus por causa dessa ilustra e exímia benevolência e graça feita a nós. Seguimos a Cristo que continua a batalha, […] carregando ainda agora a sua cruz em seu Corpo místico que é a Igreja; assim pois temos que cumprir o que falta à Paixão de Cristo...” (Monumenta Natalis V, 137).

Somos chamados a seguir a Cristo em um seguimento que é comprometimento, solidariedade, encarnação cotidiana, que dá realismo e credibilidade à nossa missão.

“É uma grande consolação para mim e para cada um, que Deus me faz a mim mesmo o mesmo que fez na pessoa de Inácio [i.e. de ser colocado com Cristo carregando a cruz]; e assim como o Senhor quis ser obediente, assim nós; assim como quis ser pobre, nós também; e como quis buscar as almas perdidas, assim nós…” (Nadal, Conferências em Coimbra, 1561).

Hoje, quando tantos refugiam-se em uma espiritualidade “sem cruz”, “light”, “intimista”, Inácio nos recorda o quanto tais modalidades afastam-se do apelo do Rei eterno: “Quem quiser vir comigo, siga-me na luta (pena, sofrimentos, trabalhos) para que possa participar também da minha glória” (Exercícios Espirituais 95)

“Devemos ter a Cristo sempre diante dos olhos como nosso chefe. Isso foi mostrado a nosso Pai Inácio: ele viu Deus colocá-lo definitivamente a serviço de Cristo carregando a cruz, e dizer-lhe: ‘Ego vobiscum ero’ (Eu estarei convosco) etc. Essa mesma é também a nossa vocação, ou seja, servir a Cristo que carrega a sua cruz, não na sua pessoa mesma, mas na Igreja, porque Cristo faz seus os sofrimentos e as perseguições da Igreja” (Monumenta Natalis V, 789).

Ter sempre a Cristo diante dos nossos olhos. Cristo pobre e humilde, com a cruz às costas. O Cristo que hoje continua a tomar sobre si os sofrimentos e perseguições da Igreja. Peçamos ao Senhor que nos receba debaixo da sua Bandeira!

 

[1] Luis de DIEGO, “Vio tan claramente que Dios lo ponía con su Hijo…”. La visión de La Storta en la vida de San Ignacio y en la espiritualidad Ignaciana. Manresa 84 (2012) 319.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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