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Alegrar-se, como Maria, pelo Ressuscitado

Alfredo Sampaio Costa SJ

A Aparição a Nossa Senhora: seu caráter exemplar

 

Essa aparição é o paradigma de todas as outras, não só por ser a primeira na ordem cronológica, mas também porque ela inaugura um novo tempo e uma nova forma de presença de Jesus.  Maria é apresentada como modelo para o exercitante. Ele deve contemplar o Ressuscitado como o contemplou Maria: com os olhos iluminados pela fé e com o coração ardendo de amor e exultante de gozo e de louvor. Quando o Ressuscitado foi ao encontro de sua Mãe revestido de glória não encontrou nela nenhum obstáculo para a experiência de comunhão com o Filho ressuscitado. Nos relatos de todas as outras aparições, os discípulos percorrem um itinerário, o itinerário da fé pascal, antes de reconhecerem Jesus ressuscitado. Em Maria, a abertura e a receptividade são totais[1].

 

A Aparição a Nossa Senhora: seu significado teológico

O que acontece a Jesus entre a sua morte no Calvário e a sua ressurreição e aparições? Sobre esta questão, os evangelhos mantêm um reservado silêncio. Inácio, ao contrário, preenche a história:

“O primeiro preâmbulo é a história, que aqui mostra como, depois que Cristo Nosso Senhor expirou na cruz e o corpo ficou separado da alma, porém sempre unido à divindade, a alma bem-aventurada desceu ao inferno, unida igualmente à Divindade. Tirando de lá as almas justas, voltando ao sepulcro e ressuscitando, apareceu à sua bendita Mãe em corpo e alma” (EE 219).

Para Inácio, a aparição do Cristo ressuscitado a Maria é parte da história da salvação. Para entender o significado teológico profundo da intuição inaciana de abrir a contemplação dos mistérios pascais com esta contemplação, nos ajudaremos do precioso trabalho do P. Kolvenbach sobre este ponto, intitulado “A Páscoa de Nossa Senhora”[2]. Se para alguns esta aparição parece uma mera invenção pia por parte de Inácio, isso seria um juízo nada justo. Já o grande teólogo Suárez resumia assim a fé do séc. XVII: “Sem a menor dúvida, deve-se crer que Cristo depois da sua ressurreição apareceu, em primeiro lugar, à sua mãe”[3].

Jean Guitton cita vários místicos que apoiam também essa fé: J.J. Olivier, o fundador da Companhia de São Sulpício, dizia ter certeza de que a primeira aparição do Cristo ressuscitado foi à sua mãe[4]. Teresa de Ávila escreve: “Disse-me que, logo depois de ressuscitar, tinha visto a Nossa Senhora, porque estava em grande necessidade (…), e que tinha sido necessário estar muito tempo com ela para consolá-la”[5]. Nos nossos tempos, um teólogo da grandeza de Von Balthasar confirma a certeza de Suárez e da sua época: “É a ela, como semente da Igreja, que o Filho sem dúvida alguma apareceu por primeiro”[6].  João Paulo II endossou a opinião inaciana e buscou possíveis razões para o silêncio das fontes neotestamentárias: “Se os autores do Novo Testamento não falam do encontro da Mãe com o Filho ressuscitando, isto talvez deva atribuir-se ao fato de que semelhantes testemunho poderia ser considerado interessado e, portanto, não digno de fé por aqueles que negavam a ressurreição”[7].

Inácio, indo contra todas as dificuldades escriturísticas e contra a opinião teológica que não tem nenhum sentido uma aparição de Jesus a sua Mãe, já que as aparições têm por objetivo confirmar a fé das testemunhas, coisa que seria absurda no caso de Nossa Senhora, afirma: “Apareceu à Virgem Maria”. E, com um tom polêmico, totalmente excepcional nos Exercícios, Inácio acrescenta: “De fato as Escrituras supõem que nós temos inteligência, como está escrito: “Sois vós também sem inteligência” (Mt 15,16; Mc 7,18; cf. EE 299).

Como apresentar esta contemplação ao exercitante[8]? O Pe. Congar apontou esta tentação de apresentar esta contemplação somente como um assistir a um colóquio íntimo entre Jesus e sua Mãe, encontro que teria como único objetivo consolar Nossa Senhora na sua “solidão, em tanta dor e sofrimento” (EE 208).

A tradição acolhida por Santo Inácio: Certamente não foi somente a leitura da “Vida de Cristo” a fazer conhecer esta primeira aparição do Ressuscitado a sua mãe. A visita à capela aonde Jesus por primeiro apareceu a ela, como piamente se acredita, depois de ter ressuscitado dos mortos, era parte integrante de toda peregrinação a Jerusalém. A liturgia romana celebrava a Eucaristia pontifícia de Páscoa na Basílica de Santa Maria a Maior, em recordação, dizem os autores da época, da primeira aparição[9].

Na Espanha se conserva até os nossos dias a liturgia popular do encontro, durante a qual duas procissões, uma do Ressuscitado, a outra de Nossa Senhora, se encontram diante da Igreja. Todas estas manifestações, bem conhecidas a Santo Inácio, eram testemunhas de uma antiga tradição que merece ser reevocada, para conhecer mais profundamente as bases teológicas do “mistério” que Santo Inácio continua a nos fazer contemplar, como fundamento da Quarta Semana[10]. Em um fragmento copta do Evangelho de Bartolomeu, do século IV, que parece ser o testemunho mais antigo de que dispomos[11], a aparição de desenvolve como um colóquio: Nossa Senhora proclama a sua fé no seu Filho ressuscitado e o Senhor saúda a sua mãe: “Saúde a te que trouxestes a vida ao mundo. […] Maria, minha mãe, quem te ama, ama a vida!”. Um outro testemunho, provavelmente da mesma época, é um fragmento etíope do Evangelho de Gamaliel. O Senhor ressuscitado exerce o ofício de consolador dizendo a Nossa Senhora: “Maria, tu derramaste muitas lágrimas até agora. Aquele que foi crucificado vive agora. Quem te traz consolação é aquele de quem estás buscando notícias. […] Ele partiu as portas de bronze e libertou os prisioneiros do Xeol”.

Um século mais tarde, no séc. V, S. Romano não hesitou em colocar este encontro aos pés da cruz na esperança da ressurreição. N. Senhora, chamada na liturgia oriental “a ovelha sem defeito”, interroga “o Cordeiro”, seu Senhor, sobre o sentido da Paixão. O filho lhe responde: “Assegura-te, mãe: tu serás a primeira a ver-me quando eu sair do sepulcro. Eu virei para te mostrar pelo preço de quais penas eu resgatei Adão e quais suores eu derramei por ele. Aos meus amigos eu revelarei os sinais que eu mostrarei nas minhas mãos. E então tu contemplarás, ó mãe, Eva vivente como antes, e tu gritarás com alegria: Ele salvou os meus genitores, meu Filho e meu Deus”.

O influxo de São Romano sobre a liturgia bizantina é conhecido: esta oração oriental não considera a aparição do Ressuscitado como um fato isolado, mas no conjunto do mistério pascal como um elemento da paixão do Senhor e da compaixão da sua mãe. Quando Inácio nos propõe de contemplarmos a aparição do Senhor Ressuscitado a Nossa Senhora, é todo o tríduo sagrado que é reevocado[12].

Santo Inácio não conheceu as fontes orientais que hoje nós conhecemos. A sua fonte escrita era a meditação proposta por Ludolfo de Saxônia na Vita Christi. E Ludolfo sugere de colocar a aparição na casa de Nossa Senhora, onde ela se encontra sozinha. O silêncio evangélico é discutido amplamente e a conclusão é resumida numa frase na qual parece que estamos escutando o autor dos Exercícios: “E se bem que isso tenha passado sob silêncio pelos evangelistas, todavia assim se acredita piamente”. Seria inconcebível que o Senhor ressuscitado não tivesse aparecido à sua mãe, tendo aparecido a tantas outras pessoas.  O colóquio por ele descrito do Senhor com sua mãe não é sem interesse para nós: “Eles ali estão e falam da alegria, vivendo a Páscoa com delícia e amor; o Senhor Jesus lhe conta como ele libertou o povo do inferno e o que ele fez naqueles três dias. É, portanto, a hora da grande Páscoa”.

Maria, ícone da fé pascal: O P. Kolvenbach comenta que a insistência pós-conciliar sobre a figura de Nossa Senhora como a primeira crente descarta a opinião de uma visão beatífica da divindade do Ressuscitado, concedida a N. Sra. No seu primeiro encontro pascal com Ele. Conforme a Bem-aventurança citada também por Inácio (EE 305): “Felizes aqueles que não viram e creram”. É preciso então considerar N. Sra. como aquela que acreditou, não somente no início ou durante a sua vida com nosso Senhor, mas também ao interno do mistério pascal. Ora, é a fé na Ressurreição que nos faz encontrar o Ressuscitado.  É esta fé de N. Sra. que cantam os elogios fúnebres da liturgia bizantina: “Ó Salvador, quando eu te verei, exclamava a Virgem Mãe de Deus, quando poderei contemplar a alegria do teu retorno, ó fulgor sem fim, ó Luz da minha alma!”. “Ó minha Mãe, cessa os seus lamentos, não chores por mim, malgrado o que vês, porque eu sofri a morte livremente para renovar os mortais, depois da queda deles”. “Ó meu Cristo, chorava a Virgem Mãe, de qual amargura é impregnado o meu coração enquanto contemplo o teu abaixamento; tu, que és vida, dizia a Mãe imaculada, chorando o seu Filho que jazia na tumba”. É sempre contemplando a realidade cruel do Senhor que N. Sra. expressa a sua fé na vida.

Se todas as demais aparições permanecem “exteriores” e têm uma finalidade kerigmática, a aparição a Nossa Senhora só pode ser algo “interior” e gratuita. O Ressuscitado não permanece em uma aparição externa a ela. É nela que Ele revive e N. Sra. experimenta em uma maneira única o Cristo que habita por meio da fé e de uma nova maneira a existência do discípulo de um Senhor ressuscitado. Comenta Adrien Demoustier: “A Virgem é de algum modo o protótipo, a figura que reclama em nós o ir além da letra, na atualidade da presença eclesial à graça, forma atual de comunicação que nos é feita da ressurreição em ação agora. Nisso, ela é assim a figura da capacidade que a humanidade possui de acolher a iniciativa trinitária de lhe comunicar a vida do Filho pelo nascimento de Jesus”[13].

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] Álvaro BARREIRO, Aparição de Jesus Ressuscitado a Nossa Senhora segundo Inácio de Loyola (EE 217-220;299), Itaici 64 (2006) 47.

[2] Publicado em Folli per Cristo, Borla, Roma 1999, 133-146.

[3] In De mysteriis vitae Christi, disp. 49, sez.I, n.2 (Opera, XIX, 8 876).

[4] J. GUITTON, Le Christ de ma vie. Dialogues avec J. Doré, Desclée, Paris 1987, 297.

[5] SANTA TERESA DE JESUS, Obras Completas, BAC, Madrid, 3ª. Edição, 1972, 461-462.

[6] Hans Urs VON BALTHASAR, Triple couronne: le salut du monde dans la prière mariale, Culture et Vérité, Namur 1978, 96.

[7] JOÃO PAULO II, Maria e a Ressurreição de Cristo, Itaici 30 (1997) 5-6. Alocução na Audiência Geral da quarta feira, 21 de maio de 1997.

[8] Sigamos aqui o texto de Peter-Hans KOLVENBACH, “La pasqua di Nostra Signora”, in: Folli per Cristo, Borla, Roma 1999, 139ss.

[9] UBERTINUS DE CASALI, Arbor vitae crucifixae Iesu, Venetiis 1485, I.IV, c. XXIX, f. 174d.

[10] Sobre esta tradição se pode ver Ciro GIANELLI, Témoignages patristiques grecs en faveur d’une apparition du Christ Ressuscité à la Vierge Marie, Révue des études byzantines 11(1953) 106-119.

[11] E. COTHENET,  “Marie dans les apocryphes de la passion et de la résurrection”, in: Etudes sur la Sainte Vierge, dir. P. Hubert du Manoir, Beauchesne 1961, vol. VI, c. II, seção III, 109.

[12] Cf. Edouard HAMEL, Marie et l’Eucharistie à propos d’un texte de saint Ignace, CaSpIg 17 (1981) 1-13.

[13] Adrien DEMOUSTIER,  La Contemplation et l’apparition du Christ à Notre Dame, Christus 33 (1986) 112.

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