Geraldo De Mori, SJ
“Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4,23)
Três práticas antigas, presentes no judaísmo e assumidas pelo cristianismo, mas também presentes em outras religiões, são fortemente lembradas no tempo da quaresma pela Igreja católica: o jejum, a esmola e a oração. Jesus, no capítulo 6 de Mateus, comenta cada uma dessas práticas, mostrando como devem ser vividas pelos discípulos: não para “aparecer” diante dos demais, mas como sinal de um dom gratuito (esmola), como desejo de encontro verdadeiro com Deus (oração), e como expressão de uma ausência que estimula o desejo de partilha e solidariedade (jejum). Na liturgia da Quarta-Feira de Cinzas, esse texto de Mateus aponta o caminho a ser percorrido para preparar-se para a Páscoa do Senhor, o grande mistério de entrega que expressa a plenitude de sentido à qual são chamadas tais práticas piedosas que visam à conversão.
As práticas quaresmais podem ser vividas de muitas maneiras pelos/as cristãos/ãs. Muitos/as a tomam com muita seriedade, como verdadeiros “exercícios” de piedade, buscando encontrar mais espaço para Deus em suas vidas, dando por isso mais tempo para momentos de oração, participação em encontros, muitos deles de longa tradição, como a Via-Sacra, que recorda os passos vividos por Jesus no caminho para o Calvário. Além de rezarem mais, os fiéis também se esforçam por viver o jejum, com experiências sinceras de penitência e privação, que os ajudam a descobrir o essencial, a dominar não só o “apetite” de alimentos, mas outros “apetites” desordenados relacionados a muitos âmbitos da existência. Dar esmola também se torna um gesto de descoberta da gratuidade, ou, como diz Jesus no Sermão da Montanha, que sua “mão direita não saiba o que fez a esquerda” (Mt 6,3), experiência pouco evidente em muitos.
A Igreja católica do Brasil iniciou, em 1964, uma experiência única na Igreja de todo o mundo por ocasião da quaresma: a Campanha da Fraternidade. Não se trata de negar a força das práticas quaresmais da esmola, da oração e do jejum, mas de dar-lhes um significado sempre novo, vivendo-as não somente como gestos de piedade, muitas vezes meramente rituais, como mostra Jesus nas considerações que faz sobre cada uma dessas práticas no texto do Sermão da Montanha, mas de descobrir a cada ano que novos modos devem adquirir o jejum, a oração e a esmola. Em geral, a Igreja busca nos “sinais dos tempos” da realidade social, política, econômica, social e religiosa, novos apelos que são feitos a seus fiéis para que, de fato, seu jejum, sua oração e sua esmola contribuam para que o reino de Deus se aproxime de quem passa fome, encontra-se longe de Deus ou necessita de gestos de compaixão do Bom Samaritano. Os temas e os lemas da Campanha da Fraternidade são a tradução para cada ano do significado das práticas que preparam os/as fiéis a viverem o grande mistério da fé: a Páscoa do Senhor.
Nos últimos anos alguns grupos, ligados a movimentos ou tendências fortemente críticos ao caminho trilhado pela Igreja católica desde o Concílio Vaticano II, afirmando-se como “católicos de verdade” e alinhando-se aos grupos que rejeitaram o Concílio, têm promovido uma campanha de desinformação e de difamação contra a Campanha da Fraternidade. Em 2022, acusaram o Texto Base de promover a ideologia de gênero, criando mal-estar entre católicos e protestantes, uma vez que a Campanha naquele ano era ecumênica e o Texto Base tinha sido redigido por católicos e protestantes. Em 2023, alguns desses grupos, mais que a um elemento isolado do Texto Base, opõem-se à iniciativa da Campanha da Fraternidade enquanto tal, como que acusando a Igreja de desvio do verdadeiro sentido da quaresma, que seria espiritual, sentido, segundo eles, que teria sido esquecido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que, ao invés de convocar o povo às formas tradicionais das práticas desse tempo, os teria desvirtuado, ao insistir na dimensão crítica, com exigências de um compromisso sociotransformador.
Infelizmente, muitos cristãos católicos têm se deixado levar por esse tipo de discurso, que recebem em seus aplicativos de whatsapp, ou em outra rede social da qual participam. Nem sempre se dão ao trabalho de questionar ou de refletir, alinhando-se imediatamente com o “guru” ou influenciador que divulga esse discurso. A ausência de uma formação ou de um interesse em conhecer melhor a própria fé leva muitos a se alinharem com discursos que, apesar de se dizerem cristãos e católicos, na verdade estão muito distantes do coração mesmo da verdade bíblica e da pregação do próprio Jesus.
As práticas piedosas sempre atraíram as pessoas. Todas as religiões buscam desenvolvê-las. No mundo religioso do Israel antigo, essas práticas atraíam os fiéis e os desviavam do verdadeiro sentido da religião. Deus, através dos profetas vai, por exemplo, dizer que abomina os holocaustos e sacrifícios que eram oferecidos a ele (Is 1,11-14). Segundo Amós, Deus odeia as festas religiosas e as assembleias solenes (Am 5,21). Essa consciência de que a verdadeira religião não se reduz a rituais e práticas de piedade é fortemente acentuada por Tiago, que fala que “a pura e verdadeira religião diante de Deus é cuidar dos órfãos e das viúvas nas suas dificuldades e afastar-se da corrupção do mundo” (Tg 1,27). O próprio Jesus, na famosa parábola do juízo final de Mateus, diz que o critério da salvação ou da condenação não são as práticas religiosas, mas dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir quem está nu, visitar quem está enfermo ou na prisão, acolher o estrangeiro (Mt 25,31-46). Portanto, mais que ajudarem os fiéis aos quais querem ludibriar com seus discursos, esses grupos buscam desviá-los do caminho que desde o Antigo Testamento já tinha sido mostrado, a saber, o de viver a religião não somente em seus aspectos ritualísticos, mas traduzi-la em vida que se deixa interpelar pelos que sofrem todo tipo de privação ou de exclusão.
A religião, com seus símbolos e ritos, não se esgota nas práticas da misericórdia, solidariedade e serviço aos mais pobres e humilhados. Ela é da ordem do mistério, que sempre aponta para um excesso, ou a um “muito mais”, que é Aquele que dá origem aos cultos, à adoração, mudando vidas e atraindo-as para ele: Deus. Rudolf Otto, um dos grandes estudiosos da religião no século XIX, diz que o sagrado, que está na origem das religiões, suscita “tremor e temor”, “fascínio” e “medo”. De fato, é ao redor desses dois sentimentos profundos que muita gente se aproxima da religião. É ao redor deles também que são elaborados os discursos religiosos e seus rituais. O fascínio é o que atrai, pois dá sentido, responde às perguntas mais radicais, oferece segurança, dá a sensação de se alcançar uma plenitude. O contrário, o temor, aponta para aquilo que é da ordem do não sentido, que diminui o ser humano, seja porque ele não o pode controlar, como o sofrimento, a doença, a morte, seja porque é ele quem o provoca, como a violência e tantas formas de diminuição e humilhação do outro. Na Bíblia, o fascínio é muitas vezes associado à visão e à glória, sendo pensado como graça. Já o temor, oriundo do mal e do sofrimento feito pelos humanos, é identificado como pecado.
O evangelho de João convida os discípulos de Cristo a olharem para o grande sinal que será levantado na Sexta-Feira Santa: a cruz. Nela se revela o coração da malícia do pecado, mas também aquilo que pode vencê-lo. É à verdadeira contemplação desse sinal que as práticas religiosas da quaresma convidam a todos. Que o olhar para o Crucificado suscite neste ano de 2023 nos fiéis os sentimentos do Cristo, abrindo o coração para aprender a verdadeira religião, que é a que leva a “adorar Deus em espírito e verdade”.
Geraldo De Moru, SJ é professor e pesquisador no departamento de Taeologia da FAJE