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Atentos à vida do Espírito

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Alfredo Sampaio Costa SJ

A Espiritualidade na sua riqueza e complexidade convive igualmente com uma ambiguidade inata. Quando pedimos a alguém para falar sobre sua vida “espiritual”, o que esperamos ouvir? Seguramente algo sobre sua oração ou algum aspecto concreto de sua vida na Igreja. Mas será que nossa vida “espiritual” se circunscreve somente a isso?

Quando ouvimos falar de “vida espiritual”, quase automaticamente nossos olhos (e coração) se movem para o termo “espiritual”, que qualifica a vida aqui. Talvez seja esse o erro mais comum, que acaba por desviar a nossa atenção do que vem primeiro e que jamais deverá ser relegada a uma posição secundária: estamos falando da VIDA! Vida no Espírito! Se queremos compreender o que se passa na nossa vida espiritual, é preciso partir sempre da vida como tal!
Quem me abriu os olhos para essa realidade foi Ives Raguin, no seu livro “Atenção ao Mistério”. Deixemo-nos provocar por suas sugestivas reflexões.

Vida interior, vida espiritual e relação com Deus

Ao ouvir a expressão “experiência mística” sentimos nossos pés se desprenderem do chão da realidade, rumo a cumes e êxtases. Mas será isso mesmo? Não deixa de ser curioso que sejam os místicos os primeiros a falarem que Deus deve ser experimentado na Vida!

Se queremos falar de “experiência” e de “mística”, temos que forçosamente partir de algo que vivemos, que experimentamos, que faz parte da nossa vida. Na espiritualidade, trata-se sempre da nossa relação com Deus. Ou, se preferimos, como Deus está presente na nossa vida, como captamos, sentimos, experimentamos essa Presença e como reagimos diante dela.

Grandes místicos como Teresa de Ávila, João da Cruz, Inácio de Loyola acenaram com suas vidas para a necessidade de nos voltarmos para o mais profundo de nós. Os termos “vida interior” e “vida espiritual” significam praticamente a mesma coisa. Ainda devedores ao dualismo grego, tendemos a seguir opondo “carne/espírito” como compartimentos estanques incomunicáveis, perdendo de vista a unidade da pessoa humana. Vem em nosso socorro a antropologia tripartida de Paulo, onde entra também o “espírito”: “E o mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, alma e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5,23).

Aí compreenderemos: falar de vida “espiritual” implica uma atenção às coisas do Espírito, diferenciadas aqui do carnal e do sensível. Convém, todavia, não confundir vida espiritual e vida intelectual. Há muita gente que coleciona diplomas e tem um currículo invejável, mas no que toca à vida espiritual é bastante frágil. Por outra parte, conhecemos muitas pessoas que, na sua simplicidade, revelam ter uma intensa e profunda vivência espiritual.
Falar de “vida espiritual” implica sempre uma atenção à nossa relação com o Absoluto. Todos os seres humanos temos uma relação com o Transcendente e somente a partir dela nos compreendemos e somos. No cristão, essa relação é ainda mais íntima e, portanto, mais pessoal. O cristão precisa “viver” essa relação. Viver essa relação supõe uma tomada de consciência, e em seguida uma orientação de todas as atividades humanas para a compreensão e a “realização” da relação com Deus.

Ao considerarmos a nossa “vida espiritual”, é importante partir do primeiro termo: da “vida”! Temos que partir da nossa experiência vivida, experimentada. Não podemos nos limitar a uma mera reflexão. Tampouco a uma simples atenção curiosa. É preciso “viver” a realidade da vida divina em nós… Ora, isso implica a pessoa toda: inteligência, sensibilidade, vontade, liberdade etc. Mais ainda: nossa existência é marcada (positiva ou negativamente) por muitas e muitas pessoas, que dão sentido, tempero, gosto ao que vivemos. Pessoas cuja presença ou ausência mudam tudo. Não podemos relegá-las a um plano inferior ou esquecê-las ao considerar nossa vida espiritual. Elas são, em grande parte, responsáveis pela nossa saúde interior!

No contexto tremendamente especializado em que vivemos, temos que cuidar para que a vida espiritual não seja uma especialização a mais, que alguns poucos estudiosos da espiritualidade consideram (e o restante da humanidade ignora), mas que todos possam assumir a responsabilidade de cuidar da sua vida espiritual e da dos outros (e da Igreja).

Falar de “vida espiritual” e não “espiritualidade” já indica que estamos considerando a pessoa nas suas mais diversas relações e atividades, em posse de todas as suas potências e qualidades humanas. Bem sabemos como a nossa relação com Deus toca de forma determinante a nossa vida em todas as suas expressões.
A pergunta que temos que nos fazer constantemente é: como anda a saúde da nossa vida espiritual. Ela existe? Como estamos cuidando dela? E o que podemos fazer para elevar o nível da saúde espiritual de nossa comunidade de fé e da Igreja como um todo? Como cuidar dos mais fragilizados?

Falamos grego ou hebraico?

Grande parte das confusões a respeito da espiritualidade seriam equacionadas respondendo à questão acima: ao falar de espiritualidade/espírito, estamos falando em que língua? Jean Daniélou apontava para esse perigo, quando afirmava: “Quando falamos que Deus é Espírito, que queremos dizer? Falamos grego ou hebraico? Se falamos grego, queremos dizer que Deus é imaterial etc. Se falamos hebraico, dizemos então que Deus é um furacão, uma tempestade, uma força irresistível. Daí todas as ambiguidades quando falamos de espiritualidade. Espiritualidade consiste em nos tornarmos imateriais ou em sermos animados pelo Espírito?”(1) .

O termo “espiritual” deve ser tomado no sentido de “relativo a Deus”. O Espírito, em absoluto, é Deus. A vida é chamada de “espiritual” por ser orientada para Deus. Ela será, portanto, no seu âmago, uma atenção ao Mistério da Presença da vida divina em nós, uma realização crescente da nossa relação com Deus. Dessa atitude fundamental irá decorrer todas as práticas que permitirão àquela “vida interior” se desenvolver: esforços de conhecimento pelo estudo do Evangelho e da doutrina cristã, esforços de conformidade a Cristo, de contemplação, de união… Assim se explica a elaboração, ao longo dos tempos, de teorias e técnicas da vida espiritual, por todas as religiões (2) .

Nossa vida é uma vida orientada para Deus? Pergunta provocadora e não fácil de responder. Como a desenvolvemos?

Vida interior sem relação explícita a Deus?

Seria possível algo assim? Ives Raguin faz notar que existem muitos métodos de vida interior e de meditação que nada tem de religioso, isso é, não possuem nenhuma referência objetiva a Deus. Cada vez mais e mais pessoas, no mundo secularizado em que vivemos, os utiliza e com resultados muito positivos. A finalidade desses métodos é oferecer meios para a pessoa poder se concentrar, harmonizar suas energias, pacificar-se interiormente. Tais métodos de controle mental e tomada de consciência foram particularmente desenvolvidos na Índia pela yoga e na China e no Japão pelo zen.

O confucionismo também desenvolveu certos métodos de cultura pessoal que nada tem a ver com uma busca religiosa. O taoísmo, da mesma forma, desenvolveu métodos muito elaborados cujo objetivo é alimentar as energias vitais que trazemos no nosso interior. Hoje encontramos muitas oficinas de meditação transcendental, por exemplo.

Tais métodos proporcionam uma tomada de consciência prazerosa da riqueza oculta do ser humano, produzindo assim sentimentos de alegria, de paz, de plenitude, por vezes tão grandes que nada mais parece desejado ou desejável. Contudo, essa experiência é sempre, de modo essencial, limitada ao meu ser. Seja qual for o sentimento de plenitude percebido no mais profundo de meu ser, não consigo explicar a mim mesmo o que sou nem de onde venho. A plenitude que vislumbro deve acabar por me parecer relativa em vista de outra relação que, essa sim, será plena, absoluta.

Ao me adentrar no mais íntimo da minha unidade e de minha identidade, perceberei a presença de um “Outro” em quem nada é relativo. Ao pretender dar passos por um caminho humano, subitamente me encontrarei trilhando também uma estrada divina e, aí sim, minha experiência se tornará genuinamente religiosa.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Citado em Y. CONGAR, Credo nello Spirito Santo, I, Queriniana, Brescia 1982,18.

[1] Yves RAGUIN, Atenção ao Mistério. Um aprofundamento na vida espiritual. Paulinas, SP 1981, 12-16.

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