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Banzo e alegria

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Marília Murta de Almeida

Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, poetas da libertação, imprimiram aos textos da Missa da Terra sem Males e da Missa dos Quilombos um tom penitencial que me toma com certa frequência. No lugar social em que vivo, marcado por uma história familiar de dominação e superioridade interioranas, me vejo muitas vezes caída na certeza de ter uma dívida a pagar. Dívida histórica, dívida social, dívida que não foi feita por mim, mas que me beneficia por toda a vida e que me derruba aos pés da cruz me forçando a me ver devedora.

Não basta me solidarizar com todos os que foram e são vítimas das estruturas histórico-sociais brasileiras. Não basta pedir perdão por todas as dívidas. Não basta contribuir com dinheiro, comida ou roupas quando me pedem. Não basta rezar e me penitenciar. Mas os textos dos dois Pedros me levam ao dever da penitência e depois ao questionamento sobre o que é, afinal, penitenciar-se.

No rito penitencial da Missa dos Quilombos lemos:

  Queimamos, de medo

            – do medo da história –

            os nossos arquivos.

            Pusemos em branco

            a nossa memória.

 

            Cultura à margem,

            Culto condenado,

            Fé de freguesia,

            Giro tolerado,

            Revolta ignorada,

            História mentida.

 

 

A penitência, então, não pode se reduzir ao castigo imposto ao erro confessado ou atribuído. A penitência, para gerar frutos, deve perfurar a memória, refazer a história, encontrar mais e mais palavras que possam ser ditas sobre o que foi calado. Deixar falar o que foi emudecido. E descobrir: o mudo não era mudo. A história não era vazia. A terra não estava limpa. Antes da história da minha família, havia a história que foi apagada.

A voz que sai da vida que foi emudecida é cheia de dor. Banzo. Palavra africana que traduzimos por tristeza. Mas é mais, muito mais. Tristeza que vem da saudade da terra de onde foram arrancados, tristeza pela vida roubada, pela vida escravizada que lhes foi imposta. Quando sou fisgada pelo tom penitencial da Missa dos Quilombos, caio em banzo. E se me perguntam o que é que me foi roubado, se sempre estive em terras e casas permitidas e livres, sinto, envergonhada, que estive sempre desterrada, porque filha de uma terra que já tinha donos. Seja porque a terra toda do Brasil já tinha seus filhos legítimos, seja porque recentemente descobri que a terra ocupada por minha família duzentos anos atrás já tinha seus filhos de quilombos.

Desterrada porque filha ilegítima de uma terra que amo. Desterrada porque testemunha da dor dos que tiveram suas terras usurpadas, suas vidas roubadas. Caio em banzo. A Marcha Final da Missa dos Quilombos se chama também “Do banzo à esperança”. Começa assim:

 

Banzo da Terra que será nossa,
banzo de todos na Liberdade,
banzo da vida que vai ser outra,
banzo do Reino, maior saudade,

saudade em luta do Amanhã,
vontade da Aruanda que um dia virá!
Saudade da Terra e dos Céus,
o banzo do Homem, saudade de Deus.

 

A saudade da terra se desdobra em saudade de Deus e assim em esperança. O laço com Deus aparece como o bálsamo curativo a todo banzo. Sem nos desviarmos da luta para que a realidade concreta seja cada vez mais capaz de construir laços de amor, como Deus mesmo, em todas as suas formas, nos pede, somos, entretanto, capazes de sentir a Sua presença viva.

E junto com a esperança – aquela que nunca podem nos tirar, como disse Pedro Casaldáliga tantas vezes, em texto e voz – se instaura a alegria. Em mim, confesso: a alegria é muito mais frequente do que o banzo. O sopro da vida divina me preenche e me impulsiona a andar. Quando caio, é por pouco tempo e faz parecer que era fútil a dor, o banzo e a penitência. Afinal, desterrada ou não, sigo feliz.

A fé cristã parece nos impor sempre as encruzilhadas. Demorei muito para aceitar o símbolo da cruz – por que não afirmar mais a alegria de Jesus comendo com os amigos do que seu sofrimento final? Agora entendo que a cruz é o símbolo exato porque não nos deixa esquecer a encruzilhada da experiência humana: a missão de ser feliz na relação com Deus e com o mundo sem se esquecer da dor do irmão.

A ressurreição nos eleva à alegria pela vida renovada. No silêncio do coração de cada um, ela faz seu trabalho cotidiano, e uma alegria secreta é capaz de nos conduzir pelos mais difíceis caminhos. Nos grandes movimentos da história, ela nos lança para fora do próprio coração e até oferece as oportunidades para sentirmos nossas dívidas pagas. É assim que me sinto ao saber que provavelmente a terra ocupada por minha família há duzentos anos vai se transformar num imenso território quilombola.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora nos departamentos de Filosofia e Teologia da FAJE

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