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Bem-aventurança e Poesia

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Geraldo De Mori, SJ

“Nós só nos devíamos lembrar dos pobres” (Gl 2,10)

O Sermão da Montanha, em Mateus (Mt 5,1-12), e o Sermão da Planície, em Lucas (Lc 6,20-26) começam com a bem-aventurança de Jesus dirigida aos pobres. Em “espírito”, segundo Mateus, e para os que ouviram o seu discurso, segundo Lucas. Na Mensagem para o V Dia Mundial dos Pobres, que acontecerá em Assis, Itália, no dia 14 de novembro de 2021, o Papa Francisco cita e comenta o episódio da unção de Betânia, na qual Jesus, à mesa na casa de Simão, foi ungido com nardo puro por uma mulher anônima, despertando a indignação dos presentes, para os quais o dinheiro gasto poderia ter sido dado aos pobres. Na ocasião, Jesus diz “ela praticou uma boa ação para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres entre vós” (Mc 14,6-7) (1) . Na Mensagem que propôs para o IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, no dia 16 de outubro de 2021, o mesmo Pontífice chama aos que estão engajados nesses movimentos de “poetas sociais” porque, conforme afirma, esses movimentos têm a “capacidade e a coragem de criar esperança onde só aparecem o descarte e a exclusão” (2) .

Os termos “bem-aventurança” e “poesia” referem-se, em princípio, a realidades distintas, embora sejam aproximados, pelo Papa, como inspiradores de ações cujo foco são, sobretudo, os que têm sua dignidade diminuída, desrespeitada, ou mesmo, eliminada: os pobres, em suas inúmeras e diversificadas carências e exclusões. De fato, a expressão “bem-aventurança” indica o que seria uma vida plena, em geral, identificada com felicidade, que, em grande parte é a realização de todas as potencialidades do ser humano. Por isso, em algumas traduções dessa expressão em Mateus e Lucas utiliza-se o termo “felizes”. Por sua vez, a poesia remete ao termo grego “poiesis”, que significa criação, confecção, fabricação, ação, e, por extensão, a faculdade ou a arte poética, utilizada, sobretudo, pelos poetas, que criam novos significados para a realidade através do novo sentido que conferem às palavras, pelo recurso à imaginação e às metáforas.

Dizer que os pobres são bem-aventurados ou felizes pode soar a contrassenso pois, como erigir a carência ou a miséria, com a qual, em geral, se identifica a situação da pobreza e dos pobres, como caminho de realização plena das potencialidades humanas? Na verdade, boa parte do caminho da revelação bíblica mostra a pobreza como sinal de não realização da salvação. A libertação da escravidão no Egito e a saga para a entrada na terra prometida apontam para uma busca de plenitude, que se traduz, em grande parte, na posse da terra, em vida longa e numa descendência. A situação de carência anterior deveria iluminar a existência do povo eleito, chamado a cuidar especialmente dos que encarnavam a pobreza em seu meio: os órfãos, as viúvas e os estrangeiros (Is 1,17; Sl 146,9; Zc 7,9-10; Jó 29,12-13; Jr 7,5-7). A teologia latino-americana, acusada muitas vezes de “canonizar” a pobreza, faz da “opção preferencial pelos pobres” o lugar para viver e pensar a fé. Em nenhum momento ela elegeu a miséria como ideal de vida. No fundo, como tão bem aponta o Papa em sua Mensagem para o V Dia Mundial dos Pobres, Jesus elogiou a mulher que gastou uma enorme soma de dinheiro na compra do perfume, pelo cuidado que ela teve para com ele, antecipando-se em “ungir seu corpo para a sepultura” (Mc 14,8). Portanto, aquela mulher anônima conferiu dignidade ao corpo de um condenado que seria crucificado e humilhado, perdendo toda a dignidade. A essa descoberta da dignidade dos pobres, que, como tão bem lembra o Papa, são os primeiros a não só acolher o evangelho, mas a anunciá-lo, é o que toda a Igreja deveria redescobrir celebrando mais uma vez um dia a eles dedicado.

Na Mensagem do Papa aos Movimentos Populares, ele os chama de “poetas sociais” e define a poesia como criatividade e criação de esperança. É interessante que ele utilize o termo não só no sentido literário, associado à criação de significados novos às palavras, mas também como capacidade de forjar a “dignidade de cada pessoa, das famílias e da sociedade como um todo, com terra, casa e trabalho”. A dedicação dos “poetas sociais”, diz ele, se torna uma “palavra influente, capaz de contradizer os adiamentos silenciosos” aos quais são submetidos, eles e as situações em que atuam. Os movimentos populares participam por isso da proclamação da esperança. Ao vê-los, é possível lembrar que “não estamos condenados a repetir ou a construir um futuro baseado na exclusão e na desigualdade, no descarte ou na indiferença”. Eles ajudam a humanidade a sair da apatia ou da imobilidade provocada pela lógica do sistema estabelecido, inserindo-a na lógica da imaginação de outro mundo possível, no qual a dignidade dos mais vulneráveis e descartados seja defendida, reconhecida e respeitada.

A lógica do cuidado do pobre, tão bem entendida pela mulher que ungiu o corpo de Jesus com perfume, à qual o Papa faz alusão no texto escolhido como motivação para sua Mensagem no Dia Mundial dos Pobres, é a lógica da primeira bem-aventurança, que faz do pobre o centro do anúncio do reino. Ela remete àquilo que todos somos ao vir ao mundo e ao deixá-lo: pobres. Adão, primeiro ser vivente, significa justamente aquele que é feito da adama, da terra, ou seja, daquilo que é o mais humilde e aparentemente desprovido de beleza e força, e que é posto como jardineiro de um mundo chamado à harmonia entre os humanos que o compõem, os demais habitantes e o Criador. Ao desejar “roubar o céu” e não o acolher como dom, Adão esquece sua condição e traz com seu gesto não só a ruptura com o Criador, mas também com seus semelhantes e o conjunto da obra criada. O Novo Adão, ao tomar a condição humana, indica o caminho que não só dá dignidade a todos os filhos e filhas de Adão em sua condição criatural, mas que também lhes permite retornar à harmonia e bem-aventurança para a qual foram criados/as. O hino cristológico de Fl 2,6-11 mostra que o ápice da encarnação se realiza no tomar a condição de escravo do Filho, ou seja, no assumir o lugar dos/as humilhados/as da terra, para que, como ele foi glorificado pelo Pai, todos os/as que a ele se assemelham possam também ser glorificados/as, realizando sua vocação original.

O que fazem os “poetas sociais” senão repetir, de tantas maneiras, os gestos jesuânicos e crísticos, mesmo sem muitas vezes aderirem à fé cristológica? Como a mulher anônima de Mc 13,4, eles continuam reconhecendo em tantos rostos pobres e destroçados a presença de uma dignidade a ser resgatada, valorizada, cuidada, pela qual vale a pena apostar a vida, mostrando que é da aparente ausência de bem-aventurança que pode brotar a esperança de que algo de novo, inédito, pode emergir, fazendo a diferença, deixando irromper, nem que seja por instantes, o advento do reino de Deus.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Papa Francisco. Mensagem do Santo Padre Francisco para o V Dia mundial dos Pobres. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20210613-messaggio-v-giornatamondiale-poveri-2021.html. Consultado em 10/11/2021.

[1] Papa Francisco. Mensagem em vídeo do Papa Francisco para os Movimentos Populares. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2021/documents/20211016-videomessaggio-movimentipopolari.html. Consultado em 10/11/2021

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