Pe. Jaldemir Vitório SJ
Um canto conhecido das comunidades católicas diz: “maus pastores num dia de sombra, não cuidaram e o rebanho se perdeu; vou sair pelos campos, reunir o que é meu, conduzir e salvar”. Essa estrofe inspira-se no profeta Ezequiel (Ez 34,1-31) e suas palavras duras contra os reis de Israel que, infiéis ao querer de Deus (Dt 17,14-20), acabaram por levar o povo à tragédia do exílio babilônico (séc. VI a.C.), com seus rastros de destruição e sofrimento. O pastor no trato com as ovelhas serviu de metáfora para o profeta dizer os motivos do que se passava. Enquanto Ezequiel atuava na Babilônia, Jeremias (Jr 23,1-8), em Jerusalém, batia na mesma tecla. Em Ez 34,2, “diz o Senhor Javé: Ai dos pastores de Israel que são pastores de si mesmos!”; em Jr 23,2, “assim diz Javé, o Deus de Israel, contra os pastores que apascentam meu povo…” Os reis que deveriam cuidar do povo – as ovelhas de Javé –, afinal, pouco se importavam, pois sua política tinha outros focos. Daí resultou a desgraça do exílio!
Deus não se deu por vencido. E tomou a iniciativa de ele mesmo se tornar pastor de suas ovelhas. Daí a decisão: “eu mesmo vou procurar minhas ovelhas para cuidar delas” (Ez 34,11); “eu mesmo vou reunir o resto de minhas ovelhas de todas as terras para onde eu as tinha dispersado… vou lhes dar pastores que cuidem delas”. Nesse contexto, o povo começou a cantar o Salmo 23[22], confessando: “Javé é o meu pastor, nada me faltará” (v. 1). A perda de confiança em seus guias, os reis, levou o povo a se voltar para Deus, que o conduziria para pastagens verdejantes onde pudesse descansar, e para águas frescas onde saciaria a sede (v. 2).
Jesus de Nazaré retomou a metáfora dos profetas e do salmo para entender a relação com os discípulos e as discípulas ao longo de sua jornada missionária. A catequese evangélica de João explicita, em Jo 10,1-18, essa chave para se compreender seu ministério. Ele se define como “o bom pastor”, que dá a vida pelas ovelhas, de modo a terem vida abundante (v. 10). As ovelhas escutam sua voz e o seguem, pois as conhece pelo nome. Longe de uma visão romântica, reconhece haver “ladrão”, “assaltante”, “estranho”, “mercenário” que colocam em risco suas ovelhas, pois vêm para “roubar, matar e destruir” (v. 10), pois “não se importam com as ovelhas” (v. 13), quando ele “dá a vida pelas ovelhas” (v. 15).
Evoco o tema bíblico do pastor e suas ovelhas, num momento em que tanto a palavra “pastor” quanto a pretensão de ser “pastores” têm sido banalizadas. No âmbito da Igreja Católica, aqui e acolá, aparecem na mídia bispos e padres que, no alto da condição de pastores, tomam atitudes e se dão o direito de fazer afirmações controversas com ares de verdade, sem o devido discernimento evangélico ou, em certos casos, não se preocupando com o mais rasteiro bom-senso. E põem em risco o rebanho de Jesus! Com frequência, estão mancomunados com ideologias político-partidárias desconectadas da fé e, pior ainda, em aberta contradição com o Reino de Deus, anunciado e vivido pelo Mestre de Nazaré, eixo de sua vida e pregação. A situação se repete para além dos arraiais católicos!
O inverno de profetismo em nossas igrejas abre espaço para a ação inescrupulosa de todo tipo de “pastores”, falsamente preocupados com o rebanho que lhes foi confiado. No diálogo com Pedro, o Ressuscitado lhe dá uma missão: “cuide das minhas ovelhas” (Jo 21,15.16.17). O pronome “minhas” tem relevância. Caberá ao discípulo-pastor dedicar-se a um bem alheio, com toda responsabilidade, pois deverá prestar contas ao senhor do rebanho. Jamais agirá como “mercenário, contratado para ser pastor, a quem as ovelhas não pertencem; quando vê o lobo chegar, deixa as ovelhas e foge” (Jo 10,12). Antes, como o Mestre-pastor, se disporá a dar a própria vida em prol das ovelhas (Jo 10,15). O apego afetivo e efetivo ao rebanho sob sua guarda será distintivo de Pedro-pastor e, com ele, todos e todas quantos se reconhecem responsáveis por levar adiante a missão do Bom Pastor, Jesus de Nazaré (Jo 10,11).
A catequese bíblico-evangélica oferece chaves para se distinguir os bons pastores, daqueles que são maus pastores, os quais, da boca para fora e de aparência, ousam se apresentar, em suas igrejas, como lideranças do rebanho de Jesus. Eis alguns critérios para se reconhecer os bons pastores:
- Preocupam-se com os mais pobres, de quem se tornam defensores, de modo a garantir que lhes seja respeitada a dignidade de seres humanos e os direitos elementares de filhos e filhas de Deus.
- Empenham-se por construir unidade pela superação de toda sorte de divisão, com vistas a haver “um só rebanho com um só pastor” (Jo 10,16), anseio do Mestre (Jo 17,21).
- Oferecem um sentido para a vida às ovelhas que caminham sem rumo, num mundo aliciador, onde as vozes da desumanidade parecem falar mais alto e se impor a todo custo.
- Dão testemunho de compaixão e misericórdia, numa denúncia profética da violência, da intolerância, dos preconceitos cujas primeiras vítimas são as minorias (às vezes, maioria!), os impossibilitados de fazerem valer seus direitos e, sobretudo, os carentes de cuidado.
- Não se servem dos títulos e roupagens, bem como dos respaldos eclesiásticos, para se aliar com os inimigos do povo, quais “lobos (de todas as espécies) disfarçados de ovelhas” (Mt 7,15), e se enriquecer pela exploração da boa-fé dos incautos fiéis.
- Pautam-se pelo evangelho e se mantêm distantes das ideologias nefastas, mesmo as religiosas, por se saberem compromissados com o Reino de Deus e sua justiça, buscado em primeiro lugar (Mt 6,33), e se empenham na construção do mundo querido por Deus.
- Têm suficiente autocrítica para não cair na tentação do corporativismo que os leva a defender a própria instituição, igreja, mesmo quando envolvida em abertos escândalos e infidelidades, muitas vezes criminosas, e a criticar as outras denominações.
- Mostram-se abertos para acolher as críticas e, quando necessário, trilhar o caminho da conversão, para se adequarem à sabedoria evangélica e ao estilo de vida proposto pelo Mestre aos discípulos e às discípulas do Reino, a começar pelos pastores e pastoras do seu rebanho.
A metáfora da árvore e seus frutos, usada por Jesus de Nazaré (Mt 7,15-20), mostra-se útil no discernimento dos bons e dos maus pastores dos nossos tempos. Serão reconhecidos “pelos seus frutos”, já que “uma árvore boa não pode dar frutos ruins, nem uma árvore ruim dar frutos bons” (v. 18). Defronte da pregação e do testemunho de vida de quem se apresenta como bispo, padre, pastor, missionário, apóstolo, seja qual for o título que carrega, será imperioso se perguntar: qual a conexão do que prega-ensina e do que faz com o projeto de Jesus de Nazaré? Que resultado se pode esperar de sua pregação e testemunho de vida? Que impacto tem sua pregação sobre a sorte e o destino dos mais pobres? Trata-se de submeter os “pastores” e as “pastoras” ao teste de qualidade evangélica. Sugiro tomar o Sermão da Montanha, em Mt 5–7, como parâmetro. Daqui se saberá quem está ou não alinhado com Jesus de Nazaré e seu projeto de Reino de Deus. Em outras palavras, será reconhecido o bom pastor, discípulo fiel do Mestre Jesus, e o ladrão e mercenário, seus traidores. Nenhum cristão ou cristã de boa-vontade pode ser furtar desse exercício de discernimento!
Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
11/09/2025

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Foto: Vatican News