Marília Murta de Almeida
Há alguns dias celebramos o Dia da Consciência Negra, que é também o Dia de Zumbi dos Palmares. Zumbi é símbolo da resistência negra, o que, em nosso país, pode ser entendido simplesmente como símbolo da resistência. De toda e qualquer resistência, porque a resistência, entre nós, é antes de tudo a resistência negra. Mas também indígena, claro, como bem mostram os movimentos contemporâneos de erguimento da voz indígena.
Sou fruto sertanejo, pela família paterna, e há pouco tempo aprendi que o sertanejo é, além de forte e paciente, herdeiro de ancestralidade indígena. Mas sou fruto também de convivência negra. A pior possível: filha de família de uma elite mineira pelo lado materno, dona de terras, convivi na infância com pretos que viviam nas terras da avó, dos tios, da mãe. Eram os “agregados”. Escravizados?
Ah, nem sei. Na memória, guardo afeto e confusão. Pequena demais, não entendia. Lembro do Santo Preto me empurrando no balanço e eu me sentindo rainha da roça. Lembro dos melhores queijos do mundo, em forma de bola, feitos pela Maria que era alta e preta e tinha muitos filhos e filhas. Duas delas andavam conosco nos cavalos, nadavam no rio. Uma delas até veio morar na minha casa por um tempo. Depois voltou. Mas nunca nos esquecemos. Recentemente almocei na casa dela na beira do rio, um banquete.
Em outra casa morava o filho do Santo Preto, o Zé de Santo, a esposa e os filhos deles. Uma delas é agora minha amiga e comadre, e a filhinha dela vai se formar na educação infantil aqui no teatro de onde eu trabalho. As vidas vão se enrolando, misturando. Escrevo com medo, vejo logo todas as acusações: romantismo, crença na democracia racial, olhos fechados para a dor e o conflito que nos marca.
Escrevo com medo porque sei que os críticos estão certos. Bem sei: não vivemos democracia racial, há mais do que conflito, há guerra em nosso tecido social, há extermínio da juventude negra, há perversidade branca e minha família mineira sempre fez parte disso. Mas escrevo, ainda que com medo. As mãos do Santo Preto em mim me protegiam do mundo. Os caminhos a cavalo com as meninas de lá eram plenos de vida. A amizade que me nutre agora me transforma.
Escutei num documentário sobre a vida na Terra que há três regras para os seres vivos: os mais adaptados sobreviverão e isso é a evolução; a competição impulsiona a evolução; o planeta é inconstante e suas mudanças podem favorecer ou não a vida. Pensando nessas regras, parece claro que o ser humano domina o planeta por ser a espécie mais adaptável que já existiu; sem determinações naturais, encontra em seu cérebro a potência da adaptação (que parece ser) infinitamente variável. Por outro lado, me parece que somos a espécie capaz de burlar a segunda regra: vivemos o desafio de ultrapassar a competição. Diante do cenário ecológico catastrófico, parece mesmo que a única chance que temos de mais uma vez nos adaptarmos às mudanças do planeta que nós mesmos criamos é a construção de uma convivência que não seja competitiva.
É, portanto, possível a nós contrariar a natureza. Aliás, o trabalho contra a natureza parece ser mesmo a marca do humano na terra. Assim, vemos por exemplo a expressão cada vez mais forte das pessoas transgênero. Vemos trânsitos migratórios intensos, muitas vezes à revelia da vontade de quem migra, mas sempre com a esperança de que nossa incrível capacidade adaptativa ajude a quem precisa refazer laços e estruturas sociais. Vemos lutas individuais e grupais que retratam a vontade de ultrapassar aquilo que veio marcado em seus corpos ou histórias.
Escrevo com medo, mas escrevo: há em mim memória ancestral negra e ela faz parte do que sou e me emociona e me nutre. Sei que faço parte do outro lado e que minha história ancestral concreta contém em si a face do senhor. Mas a memória ancestral negra pulsa em mim com força tal que me faz escrever este texto, mesmo sabendo que talvez ele não seja aceitável. A incongruência de lugar marcou a minha infância: eu queria ser neta do Santo Preto, como a minha comadre.
Eu queria ser um bicho da natureza, sem cor e sem história, que pudesse simplesmente se aconchegar àqueles que o protegem. E eu seria um bichinho no colo do Santo Preto e eu seria talvez como o camaleão que muda de cor. Mas talvez eu seja apenas como o poeta que olha o bicho na pedra e sente a vida que pulsa e é erótica e não tem cor nem nome: “Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no quintal, e subir na pedra. E ela me parecia viciada. A lesma ficava pregada na pedra, nua de gosto. Ela possuíra a pedra? Ou seria possuída?” (Manoel de Barros).
E assim o trabalho contra a natureza seria todo feito de natureza crua.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE