Pe. Jaldemir Vitório, SJ
Um episódio na vida do profeta Jeremias serve-me de chave para compreender a originalidade do profetismo do Papa Francisco. Contemplando o profeta do passado, compreendo o profeta do presente. De que maneira?
O texto bíblico em questão encontra-se em Jr 7,1-15. O texto em Jr 26,1-24 narra os desdobramentos da primeira cena. Ambos os textos devem ser lidos em conjunto. Tudo começa com o profeta recebendo uma ordem de Deus, bem precisa: “coloque-se na porta do Templo de Deus e proclame ali esta palavra: Escutem a Palavra de Deus, vocês todos, judeus, que entram por estas portas para adorar a Deus” (Jr 7,2). O rei Josias havia promovido uma reforma religiosa, na qual ordenou o fechamento de todos os santuários do país, de modo a concentrar o culto em Jerusalém (2Rs 23,4-20). A partir de então, o Templo de Jerusalém tornou-se o centro da religião de Israel e destino de peregrinações que vinham de toda parte. Por ser a “morada eterna” de Deus no meio do povo (1Rs 8,12), tornou-se motivo de imensa veneração. Contudo, o respeito ao Templo não motivava o povo e sua liderança a abraçar o querer de Deus centrado na prática do amor ao próximo, num modo de proceder altamente ético, no cuidado com os mais fragilizados, no respeito à vida e na rejeição dos falsos deuses, como denunciou o profeta (Jr 7,5-6). Ou seja, o culto muito bonito, de encher os olhos, andava na contramão do que era essencial para Deus. Então, Jeremias grita para quem entrava no Templo: “não confiem em palavras mentirosas, dizendo: ‘Este é o Templo do Senhor, Templo do Senhor, Templo do Senhor!’” (Jr 7,4). Caso não houvesse conversão, Deus mesmo haveria de destruir sua morada no meio do povo: “tratarei o Templo, onde meu Nome é invocado, no qual vocês colocam sua confiança, o lugar que dei a vocês e a seus pais, como tratei Silo. Eu expulsarei vocês de minha presença, como expulsei todos os irmãos de vocês e toda a raça de Efraim” (Jr 7,14-15). Ora, o santuário de Silo foi destruído pelos filisteus, que se apossaram da Arca da Aliança, que estava, ali, depositada (1Sm 4,17).
As palavras de Jeremias suscitaram a indignação dos sacerdotes, de certos “profetas” contrários a ele e de muita gente, que o prenderam e, de pronto, decretaram-lhe a morte: “você morrerá! Por que você profetizou em nome de Deus, dizendo: ‘Este Templo será como Silo e esta cidade será ruína sem habitantes?” (Jr 26,8-9). Foi grande o motim contra o profeta! Entretanto, houve quem o defendesse das acusações, pois reconheciam a origem divina de suas palavras. Esses chamavam a atenção para a gravidade do que a liderança religiosa estava para fazer, com o perigo de ir na contramão de Deus (Jr 26,16-19).
De sua parte, o profeta tinha plena consciência de estar, simplesmente, seguindo a ordem divina: “quanto a mim, eis-me nas mãos de vocês. Façam de mim o que parecer bom e justo aos olhos de vocês. Saibam, porém, que, se me matardes, é sangue inocente que porão sobre vocês mesmos, sobre esta cidade e seus habitantes. Na verdade, Deus me enviou a vocês para anunciar-lhes todas estas palavras” (Jr 26,14-15). No relato da vocação, Deus disse a Jeremias: “eis que ponho as minhas palavras em sua boca” (Jr 1,9). Portanto, as palavras fortes, dirigidas aos peregrinos na entrada do Templo, não era palavras do profeta e sim de Deus. Ele as proclamou, enfrentando todos os riscos (Jr 1,8).
Os textos da profecia de Jeremias ilustram o tema da relação entre carisma e instituição, palavras colocadas no título desta reflexão. O profeta representa o carisma, pois está convencido de falar sob a ordem de Deus e com a força que dele procede, embora correndo risco de vida. Interessa-lhe, tão somente, fazer valer o querer original de Deus, anterior ao Templo e ao culto. Age com total liberdade, não temendo as consequências do que faz. Interessa-lhe, apenas, seguir o que Deus lhe aponta, deixando de lado seus projetos pessoais.
O Templo representa a instituição, com suas hierarquias, liturgias, tradições e exigências. Os sacerdotes, os “profetas” e muita gente defendem-no, com unhas e dentes, à revelia do querer de Deus representado por um modo de proceder com alta qualidade ética. Muito antes de Jeremias, o profeta Isaías já havia denunciado essa situação, quando, falando em nome de Deus, declarou: “este povo se aproxima de mim com palavras e me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim e seus gestos para comigo não passam de mandamento humano, de coisa aprendida por tradição” (Is 29,13). O profeta denunciava, com severidade, o culto praticado em Jerusalém (Is 1,10-20). O Templo não tinha mais a finalidade de apontar para a presença de Deus no meio do povo. Deus não se encontrava lá, apesar da grandiosidade do culto.
Aqui se pode perceber a relação antagônica entre carisma e instituição: o carisma desmascara a instituição! Porém, o ideal é que a instituição seja dinamizada pelo carisma que a impede de se fossilizar. A presença do carisma motiva a instituição a estar sempre sintonizada com o querer de Deus, de modo a não se debandar para a infidelidade. Se a instituição se deixa questionar pelo carisma, estará em condições de manter sua vitalidade, dar sempre novos passos e ser relevante nos diferentes momentos da história.
Por outro lado, o carisma que não se encarna em uma instituição perde-se no tempo e no espaço, mostrando-se pouco relevante. A instituição que se articula à margem do carisma tende a ser rígida, legalista, imutável e fechada às críticas e às sugestões. O carisma que não se coloca a serviço da instituição fala aos ventos. A instituição que se recusa a escutar o carisma corre o risco de se tornar irrelevante e caminhar no contrafluxo da história. E será anacrônica, caduca, mofada.
O que tudo isso tem a ver com o Papa Francisco? Qual a novidade do seu pontificado, pensado na relação carisma e instituição? Francisco representa a irrupção do carisma cristão e evangélico no coração da Igreja Católica Apostólica Romana. Seu grande empenho consiste, em última análise, em fazer nossa Igreja entrar no passo e no compasso de Jesus de Nazaré, deixando de lado o elitismo, o fechamento em si mesma, a “peste” do clericalismo, a irrelevância histórica por ter deixado de ser “sal”, “luz” e “fermento”, o moralismo que condena e exclui, as liturgias faustosas, mas, vazias etc. etc. etc. Há quem pense que a preocupação do Papa consiste em fazer nossa Igreja respirar os ares puros do Concílio Vaticano II (1962-1965). Todavia, tendo lido várias biografias de Francisco, estou convencido de que sua preocupação última, em sintonia com a espiritualidade inaciana, se volta para o projeto de Jesus Cristo, para o Evangelho, para o caminhar da Igreja na fidelidade ao Reino de Deus, proclamado e vivido pelo Messias andarilho de Nazaré. Francisco tem razão! O descompasso da Igreja Católica, em relação ao projeto de Jesus, chegou aos limites do tolerável. Uma instituição cristã assim nos faz lembrar as fortes denúncias de Jeremias que anunciava a destruição do Templo de Jerusalém, fazendo eco ao profeta Miqueias (Mq 3,12).
A originalidade profética de Francisco reside no fato de o representante máximo da instituição Igreja Católica tornar-se a voz do carisma a lhe questionar, a lhe mostrar as fragilidades, as incoerências com o projeto de Jesus, os buracos por onde está entrando água na barca de Pedro. E, por outro lado, a lhe confrontar com os apelos prementes do Espírito de Deus. “Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 3,6). Jesus havia concluído a parábola do semeador com a mesma advertência (Mt 13,9). Dar razão ao profeta Francisco é o que se pretende dos católicos “puros de coração”, sem dolo!
Normalmente, se espera que os representantes das instituições, mormente, os mais graduados, as defendam contra as críticas e se tornem adversários de quem lhes aponta as fragilidades e as incoerências. É a tentação do corporativismo! Francisco rompe com essa tendência e não tem receio de, com ardor profético, denunciar as muitas contradições da Igreja Católica, como a autorreferencialidade e o clericalismo, e, com gestos ousados e, em algumas circunstâncias, chocantes, fazer todo o possível para que a verdade do Evangelho se torne estilo de vida dos católicos. Finalmente, a voz do carisma ressoa no coração da Igreja Católica, partindo de sua mais alta cúpula. Eis um fato, evangelicamente, extraordinário!
Entrementes, muitos setores da Igreja Católica, inclusive seminaristas, se mostram refratários ao profetismo de Francisco e insistem em reafirmar a instituição no que tem de ultrapassado, de irrelevante e de falsamente “essencial”. Um detalhe: se esquecem de confrontá-la com o Evangelho! E, movidos por um ardor impertinente, fazem de tudo para desmoralizar o Papa, desacreditá-lo, demonizá-lo e acusá-lo de herético e excomungado, numa batalha implacável contra quem não está minimamente interessado em litigar com eles. Basta fazer um passeio pela internet para se deparar com sites horrorosos de influencers, movimentos e grupos “católicos” (?) que se dizem defensores da tradição, conservadores, desprovidos de misericórdia, de respeito e de honestidade a se levantarem contra o Papa.
Graças a Deus, Francisco segue impávido, sem se deixar intimidar pelos inimigos do Evangelho, inclusive, dos altos escalões da Igreja Católica, que querem calá-lo. O Papa tem agido como fez Jesus, em Nazaré, quando os acusadores queriam lançá-lo de um precipício: “passando pelo meio deles, prosseguia seu caminho!” (Lc 4,30). Enquanto isso, membros de outras igrejas e fiéis de outras tradições religiosas, ateus, “desigrejados” (cristãos e cristãs que se desvincularam das igrejas e vivem à margem delas) e tantas outras pessoas de boa-vontade deixam-se tocar pelas palavras de Francisco e abraçam sua causa alicerçada nos ideais do Reino de Deus, proclamado por Jesus de Nazaré.
“Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão” diz o refrão de uma música inspirada em Lc 19,40. Quando a voz de Francisco se calar, Deus haverá de se fazer ouvir por outros profetas semelhantes a ele (Dt 18,15). Pensando bem, não adianta matar os profetas da nossa Igreja. Eles sempre ressuscitarão, nos passos de Jeremias e do Messias Jesus. Basta olhar a história bimilenar de nossa Igreja “santa e pecadora”. O profeta, agora, se chama Francisco!
Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Crédito: Vatican News