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CARTAS de FILÓSOFOS: palavras e presenças

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 Silvia Contaldo

            Parecem ser recorrentes, na humanidade, as crises, as guerras, os conflitos. A cada episódio o homo quaerens – esse que pergunta e que indaga – busca explicações, justificações.  Muitas vezes busca-se legitimar ações que, pensamos, os seres humanos jamais seriam capazes de cometer. Hiroshima e Nagasaki, Vietnã, Auschwitz, Soweto, Shaperville, Gaza… Não faltam comentaristas, ensaístas e intérpretes dos fatos, cada um sob a sua ótica encurtada. Mas há também aqueles que observam os fatos, olhando para o céu e até se esquecem do chão que pisam. Foi o que aconteceu com Tales de Mileto (ca. 625 aC).  Observando o céu, com seu olhar apurado, Tales nos deixou o registro de um eclipse total do sol, provavelmente em 28 de maio de 585 aC.  Custou-lhe uma queda.

De lá para cá, filósofos e filósofas têm observado o céu e seus arredores.  No mundo ocidental, já são mais de 2500 anos de muitos tropeços, que nos chegam em forma de boa herança: tratados, diálogos, ensaios, sumas, ensaios e cartas!  Ah, as cartas!  Em tempos de crises as cartas são restauradoras, quase como um aceno de que nem tudo está perdido. As cartas de filósofos não são escritas, muitas vezes, para um só destinatário. São dirigidas a qualquer um, em suas comunidades, para que todos possam ler a realidade com lentes menos ingênuas. São também atemporais, pois nos reapresentam um tempo passado – e suas crises, e nos ajudam a refletir sobre as nossas próprias tribulações.  Dentre tantos filósofos que, no conjunto de sua obra, também escreveram cartas – Platão, Sêneca, Santo Agostinho, Voltaire, Nietzsche, Hannah Arendt, Mary McCarthy, destacamos aqui Epicuro, filósofo do século III aC.  Epicuro viveu numa Atenas desencantada com a vida política. Sob o comando de Alexandre Magno, os gregos passaram de cidadãos a súditos. Perda de cidadania costuma acarretar outros males correlatos. Alienação e abandono da razão. Epicuro não deixou por menos. Escreveu cartas e, por meio delas – restaram três, demonstrou a eficácia e o alcance da palavra escrita.

Na Carta à Heródoto estão tratadas questões para as quais, ainda hoje, não há respostas conclusivas. Qual é a natureza das coisas?  Qual é o princípio da realidade?  Dirigindo-se a Heródoto, escreve: “Para os incapazes de estudar acuradamente cada um de meus escritos sobre a natureza, Heródoto, ou de percorrer detidamente os tratados mais longos, preparei um epítome de todo o meu sistema a fim de que possa conservar bem gravado na memória o essencial dos princípios mais importantes e estejam em condições de sustentá-los em quaisquer circunstâncias, desde que se dediquem ao estudo da natureza” (LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. X, 35). E quais seriam esses princípios tão importantes – resumidos, para que Heródoto os ensinasse aos interessados nos estudos da Física? Atenção, Heródoto!  “Aqueles que progrediram suficientemente na contemplação do universo devem ter na memória os elementos fundamentais de todo o sistema doutrinário, pois necessitamos frequentemente de uma visão de conjunto, embora não aconteça o mesmo com os detalhes” (Ibid., X,35)

Numa segunda carta, Carta a Pitoclés, Epicuro tratará do fenômeno celeste. Interessante é que ele, de saída, relembra que recebera uma carta do próprio Pitoclés pelas mãos de Clêon. Sinal de que o conhecimento produzido circulava e, mesmo sem as facilidades e a rapidez de uma world wide web, as ideias transitavam no tempo e no espaço: “Clêon trouxe-me a tua carta, na qual continuas a mostrar-me teus sentimentos amistosos, contrapartida de minha devoção para contigo, e não sem sucesso procuras recordar os raciocínios capazes de ensejar a conquista de uma vida feliz. Pedes ainda que eu te mande uma exposição sumária e suficientemente clara sobre os fenômenos celestes, a fim de que possa fixá-la facilmente na memória, pois o que escrevi em outras obras é difícil de recordar […] Alegra-me receber o teu pedido e concordo em atender ao mesmo…” (LAÊRTIOS Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. X, 84). Quase ao final da carta Epicuro faz uma recomendação a Pitoclés, ainda válida para os nossos tempos: “Fixa na memória, Pitoclés, todas essas explicações. Assim te livrarás em muitos casos dos mitos e poderá compreender outras explicações semelhantes a estas” (Ibid., X, 114).

E, por fim, a Carta a Meneceu, provavelmente a mais lida e divulgada e, nem sempre, compreendida. Infelizmente catalogada nas seções “de como ser feliz em poucos passos”, a Carta a Meneceu é um breve e profundo tratado filosófico sobre a condução da nossa vida, sobre o sentido da morte, sobre a felicidade que se alcança quando se vive à luz da Filosofia. Não, não é autoajuda.  É de alta ajuda para todos que, concordando com Epicuro, possam continuar a reescrever: “nenhum jovem deve demorar a filosofar, e nenhum velho deve parar de filosofar, pois nunca é cedo demais nem tarde demais para a saúde da alma” (LAÊRTIOS Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. X, 122).  Nunca é cedo demais ou tarde demais para ler as cartas de filósofos. Somos, ainda, homo scribens.

 

Sílvia Contaldo é professora no departamento de Filosofia da FAJE

 

 

 

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