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Categorias estéticas: um reconhecimento pelas ruas de Ouro Preto

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Clovis Salgado Gontijo 

Ao longo da disciplina de Introdução à Estética, que ofereci, no primeiro semestre de 2024, aos alunos do terceiro ano do curso de Filosofia, examinamos, a partir de leituras e aulas expositivas, seis categorias estéticas consagradas pela história do pensamento ocidental: o belo, o sublime, a graça, o trágico, o grotesco e o Kitsch.

Poderíamos nos questionar, num primeiro momento, se o termo “categoria”, cujo emprego filosófico remonta à metafísica aristotélica, seria, de fato, aplicável à experiência estética.[1] Por seu caráter fluido, inapreensível e singular, os eventos artísticos e naturais que nos comovem (em graus mais ou menos positivos) parecem não caber nas molduras dos “conceitos supremos”[2], com os quais se predicam os juízos de gosto[3] e se articula uma suposta “ciência do belo”. No entanto, desde o século XVIII, filósofos como Edmund Burke e Immanuel Kant constatam a presença de ricas nuanças nas experiências estéticas, o que exigiria, no mínimo, uma distinção entre nossas “ideias” ou “sentimentos” do belo e do sublime. Um pouco mais tarde, em pleno romantismo, Friedrich Schlegel reconhece que o termo belo, a categoria fundamental da estética filosófica, costuma ser usado em duas acepções distintas. Por um lado, em sentido estrito, como forma bem-acabada, composição unificada, ordenada e harmoniosa, ou seja, unidade na variedade, e, por outro, em sentido amplo, como categoria capaz de englobar as mais diversas experiências dotadas de repercussão estética.[4] Contudo, o uso do termo belo em sentido amplo negligencia, obviamente, as particularidades de tais experiências, que, em alguns casos, poderiam ser agrupadas de acordo com traços constantes identificados tanto em seus “objetos” desencadeadores quanto em suas ressonâncias subjetivas. Assim, apesar do desafio contido na tentativa de se efetuar uma espécie de “taxonomia” estética, a nomeação das “modificações do belo[5], para recorrer à terminologia empregada por Benedetto Croce, poderia atestar “uma pluralidade de conotações e matizes cujo reconhecimento contribui, além do mais, para o enriquecimento da cultura e da comunicação estética”[6].

Acreditando justamente em tal contribuição, nossa turma realizou, no dia 13 de junho último, uma excursão a Ouro Preto com o objetivo de saborear, reconhecer e coletar, por meio de fotografias, exemplos das seis categorias selecionadas. Tratando-se de uma cidade colonial, grande parte dos exemplos foram colhidos em obras pictóricas, escultóricas e arquitetônicas religiosas do século XVIII. No entanto, também estivemos atentos às manifestações artísticas que coloriam as ruas, os jardins e as sacadas, assim como à arte modernista de Guignard. Além das obras realizadas por mãos humanas, identificamos na natureza exemplos privilegiados do belo e do sublime. Como conclusão inesperada da visita, constatamos o quanto fatores naturais têm o poder de interferir na recepção e na classificação estética das paisagens urbanas. Sem dúvida, o céu junino azul turquesa, livre de nuvens, que nos recebeu naquele dia de Santo Antônio, trouxe um ameno clima de beleza à nossa contemplação, estimulada por uma atmosfera de cores vivas, de contornos apreensíveis e bem delimitados. Se, ao contrário, tivéssemos encontrado a cidade encoberta por névoas, sob um céu acinzentado, como nas “paisagens imaginantes” de Guignard, o sublime, com seus mistérios, inquietações e surpresas, teria dado outro tom ao passeio e à pesquisa.

A partir da observação direta dos exemplos e de seus registros fotográficos, intrigantes questões se colocaram. A profusão de imagens pertencentes ao contexto da arte sacra nos permitiu pensar de que modo o fenômeno religioso se manifesta em cada uma das seis categorias. Consideramos se um período histórico específico, com seu particular “espírito de época”, privilegiaria, em suas obras, certas categorias estéticas em detrimento de outras. Ponderamos se deveríamos buscar na arte ou na natureza os exemplos mais apropriados de uma categoria como o sublime. Indagamos até que ponto uma obra artística poderia subverter a arraigada equivalência entre a graça e o feminino, por um lado, e entre o sublime e o masculino, por outro, uma vez que as dicotomias estéticas costumam ser construídas em paralelismo com a dicotomia de gênero. Interrogamos se algumas categorias teriam mais afinidades com outras, diante da observação de curiosas interseções, num mesmo exemplo, entre o Kitsch e o trágico ou o Kitsch e a graça. Questionamos se certos objetos e arranjos artísticos, com seus simulacros e ornamentações simplórias, como encontramos com frequência em espontâneos artefatos de devoção popular, enquadram-se propriamente no Kitsch, categoria que, como explica Umberto Eco[7], implica a intenção expressa de enganar, fazendo-se passar por “alta cultura”.

Ao aprofundarmos as seis categorias estudadas e as reconhecermos pelas ruas de Ouro Preto, confirmamos o dinamismo constitutivo à estética. Como vimos no início do curso, guiados por Luigi Pareyson[8], a criação, a interpretação e a apreciação artísticas repercutem na especulação filosófica e vice-versa. Essa riqueza, decorrente da relação com a experiência, intensifica-se, especialmente, num trabalho em equipe, nos quais as percepções, as impressões e as análises se somam. Retornamos de nossa breve viagem com a certeza de termos aberto, um pouco mais, o infinito leque da beleza em sentido amplo e de termos nos envolvido, também um pouco mais, com os problemas filosóficos por ela suscitados.[9]

Clovis Salgado Gontijo é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

 

[1] Esclarece o filósofo chileno Pablo Oyarzún que o termo “categoria” começa a ser aplicado à estética na última década do século XIX e na primeira década do século XX, pelos autores Karl Groos (1892), Victor Basch (1896) e Charles Lalo (1908). Cf. OYARZÚN R., Pablo. “Categorías estéticas”. In: XIRAU, Ramón e SOBREVILLA, David (ed.). Estética. Madrid: Trotta, 2003, p. 68. (Enciclopedia Iberoamericana de Filosofía, v. 25)

[2] Ibid., p. 67.

[3] Como explica Giancarlo Grossi: “A cada vez que buscamos definir qualitativamente a experiência vivida no encontro com um objeto, não fazemos outra coisa que produzir categorias estéticas ou aplicar a ele aquelas já existentes. As categorias estéticas são os predicados dos quais se serve o juízo de gosto” (GROSSI, Giancarlo. “Categorie estetiche”. In: PINOTTI, Andrea. Il primo libro di estetica. Torino: Giulio Einaudi, 2022, p. 32, tradução nossa. (Piccola Biblioteca Einaudi. Mappe; 89)

[4] SCHLEGEL, Friedrich. Sobre o estudo da poesia grega. Tradução, apresentação e notas: Constantino Luz de Medeiros.

[5] CROCE, Benedetto. Estética como ciência da expressão e linguística geral: teoria e história. Organização: Giuseppe Galasso. Tradução: Omayr José de Moraes Júnior. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2016, p. 325.

[6] OYARZÚN R., op. cit., p. 70-71, tradução nossa. (Enciclopedia Iberoamericana de Filosofía, v. 25)

[7] ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 112, 117. (Debates; 19)

[8] PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução: Maria Helena Nery Garcez. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 8-10.

[9] Registramos os frutos dessa experiência não só neste texto, mas numa pequena exposição, montada na FAJE, no corredor do primeiro andar do bloco Pe. Libanio. Para compor tal exposição, confeccionamos seis cartazes, cada qual especificamente dedicado a uma das categorias estéticas em questão, e neles colamos fotografias ilustrativas, feitas durante a visita a Ouro Preto, acompanhadas por legendas com reflexões elaboradas tanto pelos alunos quanto por pensadores e artistas renomados.

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