Alfredo Sampaio Costa SJ
A dinâmica da vida espiritual se desenvolve em uma busca crescente de unidade interior e conhecimento de si, em um itinerário que é sempre pessoal. Tudo tem início com um chamado!
Charles-André Bernard nos recorda que a vocação não se confunde pura e simplesmente com o chamado genérico que Cristo lança a todos os cristãos, provocando-os a assumir um serviço insigne (como no Apelo do Rei temporal (EE 91-98). Falar de vocação implica acrescentar a este apelo geral uma intuição particular do Espírito. Toda vocação pessoal procede, pois, de uma livre iniciativa de Deus. É Ele quem dispõe da nossa vida. A nós complete cooperar à moção e à vocação divina.
O Padre Bernard chama a nossa atenção para o fato que há um elemento de interioridade que caracteriza a experiência espiritual de Inácio. A noção de reta intenção, tão importante para Inácio, torna-se docilidade ao apelo interior do Espírito. A vocação não é algo que inventamos, mas é, antes de mais nada, acolhida e escuta de um chamado dirigido a nós pelo Senhor. Supõe, pois, uma atitude de atenção orante[1].
Este tema do Chamado será retomado por Bernard no seu livro “O Projeto Espiritual” (“Le Projet Spiritual”)[2]: ali ele insiste que falar de vocação é falar de uma eleição feita por Deus, que constitui um ato divino imanente sem qualquer motivação própria:
“Toda intervenção de Deus na história é uma eleição, seja que Ele escolha um lugar para ali manifestar mais especialmente sua presença, seja que Ele eleja um povo para realizar seus desígnios, seja que Ele escolha um homem para ser seu representante ou mensageiro. O Deus do Antigo Testamento é Aquele que, dispondo de uma soberania universal, manifesta-a pela livre disposição que faz dela. O termo técnico utilizado para designar o fato da eleição é o verbo “bachar”, que exprime uma escolha feita entre várias possibilidades. Os aspectos particulares e os motivos profundos desta eleição são explicitados com a ajuda de outras raízes que colocam em evidência algum dos aspectos particulares da eleição: assim gara põe em evidência a ideia do chamado; ganah e hiqedish o da pertença; hibedil o da separação e de ser colocado à parte e, enfim, yadac que mostra que a eleição é acompanhada pelo interesse e solicitude por aqueles que são objeto dela”[3].
Deus estabelece uma aliança quando quer, como quer e com quem quer. A resposta que Ele espera de nós é o comprometimento da própria existência na obediência a uma palavra que, simultaneamente, revela-se ao homem. Todo apelo suscita conversão, compromisso. E não somente uma conversão inicial. O homem deverá renovar continuamente a sua relação pessoal a Deus que o salva. E depois, não nos esqueçamos, há sempre a possibilidade de um desvio de rota. Basta recordarmos aqui o povo da Aliança e suas incontáveis traições à Aliança.
Afirmar a iniciativa de Deus que sempre nos precede significa compreender que a existência cristã deve ser vivida sempre em uma constante e fundamental receptividade. Assim se formará pouco a pouco uma personalidade cristã.
Qual é a antropologia subjacente à experiência espiritual dos Exercícios? Segundo Carlo Casalone, trata-se de “uma concepção da vida de todo ser humano como precedida, desde o início, de um sentido que interpela a consciência e faz alusão a uma dinâmica de fé […]. É experiência de um sentido dado, que nos precede e nos envolve originariamente. Em virtude de tal sentido recebido gratuitamente, a consciência é interpelada por uma promessa, que a solicita a um compromisso e à decisão”[4]. A consciência é, portanto, interpelada por outro, é para o outro, porque ela é originalmente com o outro.
O Princípio e Fundamento dos Exercícios é expressão da experiência pessoal de Deus vivida por Inácio de ser tomado pela mão e conduzido pessoalmente pelo Senhor. Trata-se ali da abertura e da assunção da dinâmica experiencial do doar-se de Deus na nossa existência: é a esse convite que cada pessoa é chamada a responder e suscitar nos outros de modo responsável e criativo[5]. Inácio experimentou que Deus é nosso único Criador e Senhor e que é preciso deixar a pessoa entrar em contato direto com Ele, como Inácio mesmo insiste na 15° anotação dos Exercícios.
Nesse ponto dos Exercícios, portanto, todo o ministério jesuítico encontra o seu ponto de partida e centro e, em um certo sentido, o seu objetivo. De fato, todas as atividades apostólicas da Companhia de Jesus, incluída a do ensino, não são outra coisa que deixar que o Criador opere diretamente com a criatura e a criatura com seu Criador. Neste sentido, o respeito pelos desejos autênticos que emergem ao longo do percurso formativo de cada um pertence à experiência fundante da Companhia de Jesus e acompanha todo o seu desenvolvimento apostólico e missionário.
O inaciano é um peregrino no mundo, um peregrino que ama a terra sobre a qual vive e passa, mas sem jamais se deter nela, na dialética entre frieza radical e amor profundo. O modelo da tarefa que homens e mulheres devem desempenhar é a própria Trindade: somos chamados a imitar o modo de ser de agir de Deus[6]. Diante de Deus, a pessoa espiritual será aquela que toma consciência dos desígnios de Deus para com o mundo, si mesmo e para com os outros. Deus é um ser vivo, que chama continuamente. E esse chamado é sempre um apelo a seguir mais de perto a Cristo, cooperando à sua obra de redenção no mundo.
Os princípios geradores de uma resposta generosa: o método dos Exercícios
Sem dúvida alguma, os Exercícios Espirituais são a obra pedagógica mais bem estruturada de Inácio. Tudo está bem tramado, no lugar correto, formando um todo bem integrado[7]. Eles são concebidos de modo algum como uma série de conferências ou instruções morais, mas sim como um drama bem articulado, coordenando uma série de ações de índole diversas.
Neste processo em desenvolvimento vai se realizando o encontro da pessoa com o Deus que chama (vocação) até alcançar a meta de uma resposta generosa e pessoal ao chamado (eleição). Portanto, temos aqui dois dramas em andamento, dialogando reciprocamente: “o drama da vocação e o drama da eleição”[8].
Inácio, jamais abandonando sua visão de mundo teocêntrica, começa por colocar a pessoa humana no centro da atenção. Assim, o Princípio e Fundamento de toda experiência è o ser humano situado no mundo e na Igreja tratando de orientar a sua vida com tudo que faz parte dela[9] para Deus e tentando se desembaraçar de tudo o que possa obstaculizar este movimento de vida para o Senhor.
Nem é necessário dizer que tal experiência é estritamente pessoal e se radica no centro mais íntimo da pessoa, no coração.
Esta experiência é estritamente pessoal, radica-se no centro da pessoa, no coração. Experiência pessoal, mas centrada em Deus e toda polarizada para Ele. Podemos dizer, com Maurizio Costa, que os Exercícios Espirituais, mais do que ter uma pedagogia, são uma pedagogia, uma pedagogia da experiência espiritual pessoal[10].
“Os Exercícios são na sua dimensão mais profunda uma dinâmica, um movimento vital profundo do homem que fa zuma peregrinação ininterrupta de Deus até si mesmos e de si mesmos a Deus. A cada volta ele retorna carregado de novo com energias sempre mais fortes e pronto a enfrentar aberturras cada vez mais largas. Começa a sair das suas visões, da sua maneira de pensar, para se colocar na órbita da mente divina”[11].
Tudo o que dissemos até agora poderia também se dizer o mesmo a respeito da educação: mais do que conte ruma pedagogia, ela é inteiramente uma pedagogia, um drama ou ação contínua que se utiliza de determinados meios ou recursos pedagógicos. De fato, quem já viveu a experiência dos Exercícios em qualquer de suas modalidades, concordará que a característica mais evidente da pedagogia dos Exercícios é a progressão metódica que ele propõe, formando uma totalidade orgânica e estruturada dinamicamente, em um conjunto de considerações, meditações e contemplações, regras e notas, onde o todo só ganha sentido se considerado “na mesma ordem em que se apresentam” (EE 20).
Quem quiser viver tal experiência precisará estar disposto a percorrer um caminho progressivo, gradual e que exigirá muita paciência seja de quem faz, seja de quem guia e acompanha a experiência.
Inácio cobra do exercitante uma presença ativa e total ao momento que está vivendo, sem nenhuma pressa de passar adiante nem tampouco antecipar o que vem pela frente, não se deixando levar pela curiosidade ou desejo de saber o que virá em seguida: “Para quem está fazendo os exercícios da primeira semana, será útil não saber de nada que deverá fazer na segunda semana; antes, que se esforce de todos os modos em alcançar na primeira aquilo que busca, como se não tivesse nada de bom a buscar na segunda (EE 11). Esse princípio vale para todo o conjunto da mesma forma que para cada momento em particular. Lembro que no início Inácio não dava o texto dos Exercícios ao exercitante, e as edições impressas dos Exercícios eram limitadas, para que a pessoa pudesse fazer seu caminho, guiado pelo Espírito Santo, sem distrair-se com o texto.
Uma imagem que ajuda a entender a pedagogia dos Exercícios e que certamente povoava a mente de Inácio é a da peregrinação. Os Exercícios propõem vigorosamente o paradoxo de uma peregrinação a ser sempre prosseguida, levada adiante, mas que exige, para isso, paradas, retomadas, pausas restauradoras. Nesta alternância dialética, traçam uma estratégia de sabedoria difícil que supera toda aparente contradição. Seguramente o que se busca é progredir, mas isso só é possível gradual e pacientemente. Não existem atalhos aqui. Para que a semente dê frutos, não podemos abreviar os tempos das longas germinações[12].
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Cf. Charles-André BERNARD, L’homme spirituel selon Saint Ignace. Pro manuscripto, 7.
[2] Charles-André BERNARD, Le Projet Spirituel, PUG, Rome 1970, especialmente as páginas 31-38 e 107-116.
[3] E. JACOB, Théologie de l’Ancien Testament, Delachaux Niestlé 1955, 164.
[4] Carlo CASALONE, “Prefazione”, in Secondo BONGIOVANNI – Ferdinando FAVA, Accedere all’originalità personale. La formazione nelle organizzazioni complesse. Pardes Edizioni, Bologna 207, 15-16.
[5] Cf. Secondo BONGIOVANNI, “Didattica e Filosofia: all’ascolto degli Esercizi Spirituali”, in Secondo BONGIOVANNI – Ferdinando FAVA, Accedere all’originalità personale. La formazione nelle organizzazioni complesse, 31-33.
[6] Antonio SPADARO, “Alle radici della Pedagogia dei gesuiti: il rapporto dell’uomo con il mondo e la storia alla luce della spiritualità degli Esercizi di Sant’Ignazio di Loyola”, in La Pedagogia della Compagnia di Gesù. Atti del Convegno Internazionale. Messina 14-16 novembre 1991 (a cura di F. Guerello – P. Schiavone), ESUR, Ignatianum, Messina 1992, 583.
[7] José Ma. RAMBLA, De los Ejercicios a la Pedagogia Ignaciana, 1. Dal sito “Centro Virtual de Pedagogia ignaciana”, http://www.pedagogiaignaciana.com/admin/bibliografias.php accesso effettuato il 22 ottobre 2008.
[8] Henri BREMOND, Saint Ignace et les Exercices, La Vie Spirituelle Supplément 20 (1929), 85-87.
[9] Cf. Joseph THOMAS, Le Secret des Jésuites. Les Exercices Spirituels. Paris: Desclée de Brouwer-Bellarmin 1984, 55-60.
[10] Maurizio COSTA, Appunti intorno alle linee fondamentali della Pedagogia della Compagnia di Gesù, CIS, Roma 1987, 5.
[11] Ignacio IPARRAGUIRRE, “Gli Esercizi ignaziani, chiave e anima della missione del gesuita”, in AA.VV., Servire nella Chiesa, Stella Mattutina, Roma 1973, 40.
[12] Cf. Joseph THOMAS, Le Secret des Jésuites, 110-111.