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Comunicação a serviço da verdade

Geraldo De Mori, SJ

Quando ele vier, o Espírito da verdade, vos guiará em toda a verdade” (Jo 16,13)

Já há algumas semanas o Congresso Nacional brasileiro discute o Projeto de Lei 2.630/2020, que pretende responsabilizar as plataformas e aplicativos digitais pelo compartilhamento das chamadas Fake News. O Google, uma das maiores empresas de tecnologia da informação, responsável por quase todas as consultas on-line feitas na atualidade e por veicular muitas informações, posicionou-se, no início de maio, contra a proposta, dizendo que ela fere a liberdade de expressão. Algo parecido aconteceu no dia 08/05/2023 com a Plataforma Telegram e com alguns veículos da imprensa nacional. Alguns políticos e ministros do Supremo Tribunal Federal reagiram à “ingerência” dessas empresas multinacionais nas discussões de uma lei do legislativo nacional que diz respeito a interesses do país. A grande maioria da população, porém, não entende o que está em jogo nesse Projeto de Lei, apesar de ter vivido e ainda sentir os efeitos do que é veiculado através das novas formas de comunicação do mundo digital. Do ponto de vista da fé, o que está em questão é importante porque as falsas notícias (fake News), a desinformação e a deturpação da verdade feita por grupos religiosos ferem algo que é central não só na comunicação humana, mas também na divulgação da mensagem cristã.

Com efeito, a busca da verdade é constitutiva de todas as sociedades e culturas. Na filosofia grega, por exemplo, que determina grande parte do modo de conhecer do mundo ocidental, a verdade, junto com a beleza e a bondade, fazia parte dos assim chamados “transcendentais” do ser. Por isso, afirmar algo significava dizer que o que era dito gozava da propriedade da verdade, da beleza e da bondade. Na tradição bíblica a mentira ou a distorção da verdade era identificada com a “origem” do mal no mundo. Conforme Gn 3, a serpente, “o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito”, manipulou a Palavra divina quando, ao abordar a mulher, lhe disse: “É verdade que Deus vos disse: “Não comais de nenhuma das árvores do jardim?” (Gn 3,1). Na realidade, Deus só tinha proibido ao casal original de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A mulher corrige a serpente, mas logo é seduzida por ela, que lhe diz que Deus não queria que eles comessem dos frutos daquela árvore porque seriam como ele, conhecedores do bem e do mal (Gn 3,4-5). A serpente desse relato não era ainda identificada com o demônio, mas era símbolo da sabedoria. Nos textos mais próximos do Novo Testamento, ela será identificada com Satanás. No Evangelho de João, Jesus identifica Satanás como “homicida desde o princípio”, aquele que não se “apegou à verdade, pois nele não havia verdade”. Por isso, continua Jesus, “quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44).

Recentemente, numa entrevista concedida ao site Noema[1], o filósofo alemão de origem coreana, Byung-Chul Han, afirmou que a verdade é “provedora de significado e orientação”, mas que a inflação de informações, veiculada pela hiperconectividade das sociedades contemporâneas, mais que manter a sociedade unida, produz fragmentação e desunião. Os bits da informação, continua o filósofo coreano-alemão, não fornecem significado nem orientação, não produzem uma narrativa, nem uma temporalidade. São puramente aditivos. Por isso, mais que informar, o que eles tendem é a deformar, podendo até obscurecer o mundo, opondo-se à verdade, produzindo desinformação. Seu produto típico são as fake News, as notícias falsas. A verdade, ao contrário, ilumina o mundo, produz coesão, convicções compartilhadas, narrativas, criando rituais, que são a expressão simbólica da temporalidade habitada. Infelizmente, nas sociedades determinadas pela informação, as democracias estão se transformando em infocracias.

Na reunião do Conselho Permanente da CNBB em outubro de 2022 aprovou-se a atualização do Diretório de Comunicação da Igreja do Brasil, que teve uma primeira edição há 10 anos. O Diretório de 2013 já havia levado em conta o processo de digitalização do Brasil, com impactos em vários âmbitos da sociedade e na evangelização. O novo Diretório, bastante enriquecido e atualizado com o rico magistério do Papa Francisco, mostra como a Igreja deve não só “utilizar” as novas tecnologias da informação para as atividades pastorais, mas também buscar caminhos que a levem a habitar o mundo digital de modo evangélico. As observações de Byung-Chul Han, pessimistas com relação às mudanças radicais produzidas pela “invasão” das tecnologias da informação em todos os âmbitos da vida, são igualmente compartilhadas por diversos setores da Igreja e assumidas no novo Diretório. Na Fratelli tutti, por exemplo, o Papa Francisco, após reconhecer os grandes ganhos das novas formas de comunicação produzidas pela sociedade da informação, mostra também alguns de seus limites, entre os quais a invasão da privacidade, através da tendência a querer expor tudo (FT 42-43), a agressividade “despudorada” (FT 44-46), a difusão de “informação sem sabedoria” (FT 47-50), as “sujeições” e a “autodepreciação” (FT 51-53).

Ao colocar balizas para as plataformas e aplicativos digitais, o Congresso Nacional intervém certamente num terreno espinhoso, pois a enxurrada de informações, muitas das quais “falsas” ou deturpadas, pode levar à impressão de que toda informação se equivale, tornando difícil saber a que de fato corresponde à verdade. Em geral, o que se tem visto, tanto no campo político quanto religioso, é uma informação contra outra informação, ou seja, não há a preocupação com a verdade, a única que pode criar coesão, convicções compartilhadas e levar à construção de um “nós” coletivo. Grande parte da polarização que marcou a sociedade brasileira nos últimos anos, e que também penetrou as comunidades de fé, foi produzida pelo excesso de informação sem sabedoria, como tão bem aponta o Papa Francisco na Fratelli tutti. Quem se diz cristão/ã não pode, porém, contentar-se apenas com informações. Necessita discerni-las. Para isso, sem dúvida alguma, precisa acreditar na verdade, que não é única nem unívoca, podendo ser enriquecida por inúmeros pontos de vista, mas que aponta para o que é.

Se a busca da verdade é necessária para a sociedade, muito mais ainda o é para aquela dimensão da existência que tem a pretensão de dizer o sentido radical, em geral identificado como dado por Deus. No mundo católico isso significa não acreditar no que dizem tantos “gurus teológicos”, como expressou a síntese da escuta sinodal da Igreja do Brasil enviada à Secretaria Geral do Sínodo. Em geral, esses gurus invocam o catecismo, citam concílios e os Papas, mas a informação que veiculam não visa formar a consciência dos fiéis, mas desinformar, colocando-se como os únicos portadores da verdade, muitas vezes acusando até as instâncias mais altas da Igreja, como se eles fossem o único magistério com poder de ensinar e apontar o caminho a seguir. Infelizmente, inúmeros fiéis se deixam enganar por esse tipo de discurso. O novo Diretório poderá oferecer às comunidades de fé critérios que ajudem os fiéis a discernirem, no contexto do excesso de informação que invade mesmo a mídia católica, o que é a verdade e o que é mentira.

[1] HAN, B.-C. All that is solid melts into information. Disponível: https://www.noemamag.com/all-that-is-solid-melts-into-information/ Acesso: 09/052023.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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