Marília Murta de Almeida
Dizem que Pedro Casaldáliga, o bispo do Araguaia, deixava sempre a porta de sua casa aberta e uma cama disponível para o caso de alguém precisar de pouso. Sabe-se também que viveu sob ameaça de morte, o que faz dessa decisão de manter aberta a casa, no mínimo, uma imprudência. Mesmo que depois o tenham convencido a trancar a porta ao menos durante a noite, podemos pensar sobre seu desejo de mantê-la aberta.
Pedro confiava. Confiava em Deus e isso o levava a acolher o irmão. Confiava no irmão, mesmo sabendo que poderia ser traído, e mesmo talvez sabendo que seria inevitavelmente traído. Como Jesus e Judas. Jesus diz: faça o que deve ser feito. Sabia que seria traído e confiava a Judas a tarefa de fazer o que devia ser feito. Se já não confiasse, não haveria traição, pois onde há traição, houve – ou há ainda – confiança.
Para evitar a traição, seria preciso evitar a confiança. Mas sem a confiança, não há amor e nem entrega de si. E não há também a possibilidade de nos refugiarmos na confiança exclusiva em Deus, pois Ele nos pede a confiança no irmão. Deixar de ver o outro como inimigo e acolhê-lo como irmão é a passagem precisa para a fé no Deus do Amor, de modo que a confiança é o caminho do aprendizado da fé.
Ah, mas quão grande é o universo de medo e dúvida que nos assalta quando nos deparamos com essa ideia. Os riscos são imensos entre nós: ser enganado, ser traído, ser tomado como tolo, ser deixado sozinho e, o que seria o maior perigo, perder a confiança em si mesmo ao se ver como tolo. Não confiar na própria inteligência pode ser o resultado trágico do ato de confiar.
Confiar nos desloca necessariamente de nós mesmos, mas, se tem como consequência a desconfiança em relação a nós mesmos, há o risco de sofrermos o retrocesso da incapacidade de confiar. Neste ponto de quase desolação, podemos nos valer de um texto singelo de Clarice Lispector intitulado “Das vantagens de ser bobo”. Leiamos algumas frases que compõem o texto como aforismos:
“– A vantagem de ser bobo é ter boa fé, não desconfiar, e portanto, estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
– Aviso: não confundir bobos com burros.
– Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos se espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê.
– Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
– Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.”
O bobo, então, segundo Clarice, é o que não desconfia e que por isso pode ser enganado, ludibriado. Mas o bobo não é burro. Ser enganado não é sinal de falta de inteligência, mas sim de falta de esperteza. Ao diferenciar bobo e burro e falar do esperto como oposto ao bobo, Clarice diferencia também inteligência e esperteza. A esperteza parece ser a inteligência colocada a serviço do medo de ser ludibriado. Inteligência contida e sem liberdade, porque assolada pelo medo. Sem liberdade, não colocamos vacas no espaço e nem seguimos confiantes como Cristo em seu martírio.
Nesse sentido, ser enganado é o risco inerente à capacidade de confiar. Quando recebe a punhalada de onde menos espera, porque não prevista pelo bobo, ele sofre, certamente, mas não desacredita de si porque sua capacidade de confiar se volta também para si mesmo. Assim, o bobo radical não cai na desolação ao se perceber ludibriado porque segue confiando. Sua capacidade de confiar é inabalável e recobre inclusive a si mesmo.
Quando o apóstolo Pedro caminhava sobre as águas e afundou ao duvidar que poderia fazer o que estava fazendo, expôs para nós o poder corrosivo da desconfiança. A fé se desenvolve pela confiança. Mas sabemos também que a inteligência se desenvolve pela dúvida. Muitas vezes a inteligência nos protege de sermos ludibriados, mas Clarice nos sugere que não prendamos a inteligência nessa função, para que ela não decaia em esperteza.
Assim, quando formos enganados, não nos acusemos de falta de inteligência. A inteligência liberta da tarefa de nos impedir de sermos ludibriados e nos deixa talvez bobos, mas não, burros, e pode se ocupar de maiores liberdades. Quando formos enganados, acusemos antes aquele que nos enganou, pois ele se vale perversamente de nosso ponto de entrega, o ponto precioso onde podemos, em nós, ouvir o Deus que nos chama.
A confiança, quando encontra espaço para crescer e se desenvolver, abre em nós mais e mais espaço interno para que a fé cresça como o grão de mostarda. É da nossa capacidade de confiar que Deus se vale para nos atrair a Ele. Sem essa capacidade, somos surdos a seus chamados.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE