“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”

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Luiz Sureki, SJ

A inscrição no pórtico do Templo de Apolo em Delfos ­ γνῶθι σεαυτόν / Conhece-te a ti mesmo ­ atravessou séculos como um dos mais enigmáticos e provocativos lemas da tradição filosófica ocidental. A versão ampliada, que acrescenta: “e conhecerás o universo e os deuses”, carrega ainda mais densidade, pois conecta o autoconhecimento humano à compreensão do cosmos e do divino. Não se trata apenas de uma máxima moral ou psicológica, mas de uma visão integral da realidade, em que sujeito, mundo e transcendência se entrelaçam numa única tarefa hermenêutica.

O complemento “… e conhecerás o universo e os deuses” apareceu em tradições posteriores, sobretudo em leituras neoplatônicas e herméticas (de caráter esotérico), que reinterpretaram a máxima em chave cosmológica e mística. Nessas correntes, o ser humano era concebido como microcosmos, um reflexo condensado da totalidade do real, de modo que o conhecimento de si implicava, simultaneamente, o acesso ao macrocosmos, isto é, ao universo e à divindade.

A sentença persuade-nos de que o ser humano é capaz de adentrar o templo interior da alma, percorrendo suas diversas dimensões como quem investiga um arquivo de si mesmo. Ao final desse percurso, torna-se possível decifrar os próprios enigmas: o conflito das emoções, os sentimentos recônditos, as vozes múltiplas que falam em seu íntimo; identificar as forças que o habitam, reconhecer as imagens que perturbam a imaginação; discernir a origem das paixões que obscurecem o olhar e inflamam a palavra. O autoconhecimento revela, assim, que o sujeito é um campo de tensões e significados, onde se entrelaçam mistério, razão e desejo.

A exigência de conhecer a si mesmo não é trivial. Para Sócrates, conhecer-se é descobrir a própria ignorância e, a partir daí, abrir-se à busca da verdade. Para os estoicos, trata-se de situar-se no cosmos como parte de uma ordem racional maior. Para os místicos cristãos e orientais, conhecer-se é reconhecer-se como habitado por uma centelha divina. Em todos esses sentidos, o “si” não é uma entidade isolada, mas uma abertura: o ser humano só se compreende em relação ao todo.

A ampliação “…e conhecerás o universo e os deuses” reforça essa intuição: o autoconhecimento não é um fim em si mesmo, mas um caminho de acesso ao cosmos e ao divino. O ser humano é um microcosmos: nele ressoam e se refletem as estruturas fundamentais da realidade como um todo. Conhecer-se é, portanto, espelhar o universo em si mesmo.

Esse princípio ecoa em diversas tradições. Para Platão, a alma participa das ideias eternas e, ao voltar-se sobre si, reencontra a ordem do cosmos. Para as tradições orientais, como o hinduísmo, o ātman (o si mesmo) é da mesma natureza do Brahman (o absoluto cósmico), e a iluminação consiste em reconhecer essa identidade. Raimon Panikkar, em chave contemporânea, falaria de uma estrutura cosmoteândrica da realidade: conhecer-se é situar-se na trama relacional que une o humano, o divino e o cósmico.

O autoconhecimento verdadeiro não é mera introspecção psicológica, restrita ao exame dos próprios estados mentais ou afetivos. Ele exige reconhecer a condição humana em sua tensão constitutiva: limite e finitude, mas também abertura ao infinito. É sempre uma experiência de descentralização, pois mostra que o “eu” não é um núcleo isolado, mas um ponto de interseção no qual convergem forças, sentidos e presenças que o ultrapassam. Trata-se, em última análise, de um caminho em que o homem se descobre simultaneamente como singular e como parte inseparável de uma totalidade maior.

Aqui se encontra o paradoxo: quanto mais o ser humano se conhece, mais descobre sua incompletude e sua remissão a algo maior. A consciência de si é, ao mesmo tempo, consciência de que o “eu” não se basta, mas remete ao todo da realidade. Assim, o autoconhecimento torna-se via para o conhecimento do universo e, em última instância, dos deuses.

Essa máxima não é apenas teórica. Ela traz implicações éticas e existenciais decisivas. Quem se conhece autenticamente descobre a dignidade da vida humana, a solidariedade com os outros seres e a responsabilidade diante do cosmos. Não há verdadeiro autoconhecimento que não conduza à transformação do modo de viver.

Nesse sentido, “conhece-te a ti mesmo” implica cultivar a atenção, a escuta e o silêncio diante de si e do mundo. Implica ainda a tarefa de distinguir, no emaranhado de desejos e possibilidades, o que se alinha ao núcleo mais autêntico do ser. Só assim o autoconhecimento se converte em sabedoria de vida.

Toda filosofia pode ser vista como variação sobre esse tema. Desde a maiêutica socrática até a crítica kantiana, desde o cogito cartesiano até a hermenêutica contemporânea, o pensar filosófico é, em última análise, uma tentativa de compreender quem somos e qual é o lugar do humano no todo da realidade.

A máxima délfica, ampliada com a referência ao universo e aos deuses, convida-nos a pensar a unidade diferenciada entre o eu, o cosmos e o divino. Não se trata de dissolver o humano no todo, nem de absolutizar o eu, mas de reconhecer a trama relacional em que cada dimensão encontra seu sentido.

Conhecer-se a si mesmo é, em última instância, um gesto de humildade e de abertura. À porta de um templo consagrado a um deus, a inscrição lembrava aos que entravam: não sois deuses! Reconhecer o que se é significa aceitar que o universo e os deuses não se dão sem nós, mas tampouco se reduzem a nós. É, enfim, assumir a própria existência como caminho de autoconhecimento.

A máxima délfica, longe de ser mero vestígio arqueológico, permanece como questão filosófica fundamental: o autoconhecimento abre a via pela qual se pode vislumbrar o universo e os deuses, e, nesse percurso, compreender a si mesmo.

Luiz Sureki, SJ é professor e diretor do departamento de Filosofia da FAJE

Foto: Wikipédia

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