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Consolai meu povo…

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Geraldo De Mori SJ

“Consolai, consolai meu povo, diz o vosso Deus” (Is 40,1)

Sábado, dia 19 de junho, o Brasil alcançou a triste cifra de 500 mil mortos pela Covid-19. Além das inúmeras manifestações que tomaram conta das ruas do país em protesto contra o atual presidente e suas políticas manifestamente contrárias ao interesse da maior parte da população brasileira, a Igreja do Brasil, através da Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e outras entidades da sociedade civil, divulgaram uma nota corajosa, recordando que a vida tem que ser protegida, e que o processo de vacinação e de acompanhamento da pandemia deve ser feito de forma mais responsável. Do ponto de vista religioso e pastoral, várias dioceses realizaram momentos de oração em memória das vítimas, num gesto de profunda comunhão com os enlutados.

De muitas maneiras Deus tem sido invocado ao longo desse tempo de pandemia. Como no Brasil ainda predomina uma mentalidade religiosa marcada pela crença no intervencionismo divino, boa parte das pessoas acredita que Deus as protegerá do vírus, colocando como que uma barreira protetora que as tornem imunes a qualquer atividade viral. Próxima dessa mentalidade é a de quem acredita que, caso seja contaminado, Deus o curará, intervindo como que de modo mágico nesse processo de cura. Os espaços religiosos de quem possui essa mentalidade se tornam por isso propícios à expansão do contágio. Nesse sentido, as igrejas mais conscientes têm insistido para que se observem as regras sanitárias, de modo que seus lugares de culto não sejam lugares de contaminação.

A afirmação de que Deus não intervém para proteger ou curar alguém do contágio, não quer negar a “onipotência” divina, mas entendê-la de modo correto. Talvez, nesse tempo ainda marcado por tanto contágio e morte, seja importante ouvir a resposta de Jesus à tentação de satanás para que salte do alto do templo, pois Deus enviaria seus anjos para que não se ferisse. Jesus diz: “não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4,7; Lc 4,12). Para entender este texto, porém, é necessária uma verdadeira conversão de mentalidade, é preciso sair de uma imagem mágica de Deus, que o identifica com uma energia ou força de proteção, e passar à experiência do Deus de Jesus, visto como Pai que cuida de todos, mas cuja ação passa pela liberdade e responsabilidade humanas. Não basta dizer que se crê em Deus para ser protegido por ele. Na verdade, como muitos teólogos têm mostrado, numa releitura dos dois primeiros capítulos do Gênesis, ao criar o mundo, Deus o confia ao cuidado do ser humano. Mais que invocar forças mágicas que estariam intervindo no mundo, é necessário exercitar a liberdade e a criatividade para que, no mundo bom criado por Deus, o ser humano possa viver em harmonia com todas as criaturas. Com efeito, em Gn 1,27-29, Deus cria o ser humano à sua imagem e semelhança e entrega-lhe toda a criação para que exerça sobre ela seu domínio. Mais que poder de exploração, esse domínio é, segundo Gn 2,15, a entrega de um dom, para que o ser humano “guarde e cultive”, ou seja, viva em harmonia com todas as criaturas, como aparece em Gn 2,19-20.

Infelizmente a imagem intervencionista de Deus tem servido a interesses escusos da política no atual momento pelo qual passa o Brasil. Os “negacionistas” manipulam frequentemente o imaginário mágico, como aparece constantemente nos discursos da autoridade máxima do país e dos que a apoiam, inclusive grupos religiosos. O número assustador de mortos do país deveria, contudo, interrogar toda consciência que se diz inspirada por Jesus de Nazaré. Inácio de Loyola, num dos momentos cruciais da experiência dos Exercícios Espirituais, leva o exercitante a se perguntar: que fiz, que faço, que farei por Cristo? (EE 53). Essas perguntas poderiam ser relidas assim ser relidas no atual momento: que fiz, que faço, que farei nesse tempo dramático da história do Brasil? A resposta deveria ajudar a se perguntar: em que Deus eu creio? Jesus nos mostrou, com seu ministério de cura, exorcismos e acolhida de pecadores e excluídos, que o Reino de Deus se aproxima quando as dores do mundo são aliviadas, o maligno é combatido e a exclusão, por motivos sociais e religiosos, é eliminada. Nesse sentido, se Deus confiou o mundo ao cuidado do ser humano, para que exercesse sobre ele um “domínio”, faz parte desse cuidado e “domínio” conhecer profundamente o mundo. Por isso, a ciência não pode ser negada, nem as medidas que ela propõe para que sejamos protegidos e protejamos os demais. É importante a oração? Seguramente. Mas também a vacina (e a luta para que ela alcance o conjunto da população o mais rápido possível), e o uso de máscaras, e evitar aglomerações. Somos colaboradores de Deus no cuidado de todos/as.

Esse esforço enorme de cuidar e curar, de lutar contra o maligno e de acolher quem é colocado à margem, exige, sem dúvida alguma, muita motivação, ânimo, coragem, resiliência. No caso dessa pandemia, tudo isso num processo de longa duração. A oração é então para que Deus nos dê sua graça e sua força para não desanimarmos, para nos mantermos de pé, motivando quem vai se cansando. Junto a tantas pessoas que perderam entes queridos e fazem um trabalho de luto, certamente é muito urgente e necessário ainda o serviço da consolação. Nesse sentido, o assim chamado Segundo Isaías inicia seu livro com o apelo de Deus à consolação: “consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus” (Is, 40,1). Mais do que nunca a conversão da imagem de Deus, que nos leva a descobri-lo como alguém que cuida, luta contra o mal e acolhe sem distinção todo tipo de pessoa, deveria também nesse tempo levar-nos a descobri-lo como consolador dos que viveram a experiência da perda: de alguém querido, das relações, de uma condição de vida. E a descoberta desta face divina deve igualmente nos motivar a ser consoladores e consoladoras de quem sofreu perdas. Nós mesmos, muitas vezes, sentiremos a necessidade de ser consolados. Inácio de Loyola, ainda nos Exercícios Espirituais, convida, no início da assim chamada “quarta semana”, a contemplar o ofício de consolador do Ressuscitado, comparando-o ao “modo como os amigos consolam uns aos outros” (EE 224).

Mais do que nunca somos chamados a exercer esse ofício num mundo de tantas lágrimas e perdas. Oxalá toda essa travessia no mar revolto dessa pandemia nos ajude a redescobrir outra face de Deus, mais próxima de nossas dores, que não nos impede de atravessar o medo, o sofrimento, a morte, mas nos dá sua força para fazê-lo e consolando-nos quando parece que vamos desanimar. Essa travessia nos tornará então muito mais humanos e nos fará efetivamente colaboradores/as de Deus para que o mundo tenha mais vida e vida plena.

Geraldo Luiz De Mori é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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