Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
Iniciamos, há pouco, nosso itinerário quaresmal ao longo do qual somos convidados ao exercício da conversão. Talvez pelo fato de termos sido habituados a uma concepção generalista de conversão, surpreendeu-me positivamente a advertência do papa Francisco com respeito à “conversão ecológica” (Laudato Sì, nn. 216-221). De fato, pressuposta a complexidade das relações que constituem nossa vida, creio que seja mesmo o caso de especificar cada vez o âmbito em que se deva dar a experiência de conversão. Além do mais, se conversão significa literalmente mudar radicalmente de rumo, então talvez seja realmente o caso de indicar cada vez mais em que âmbitos ou dimensões essa guinada se deva dar. Por tais razões, parece-me oportuna e relevante a reflexão acerca da conversão ecológica.
É importante lembrar, de início, que a conversão ecológica se situa no contexto mais amplo da conversão integral. O pressuposto é que alguém só alcançará uma conversão integral na medida em que for capaz de ir além de noções de conversão ainda muito presas a situações existenciais e intersubjetivas, e pouco ou quase nada sensíveis às questões socioambientais. Nesse sentido, a intenção de distinguir a dimensão ecológica das outras dimensões constitutivas da conversão evangélica não é a de separá-las, criando divisões ou rupturas. O que se quer, na verdade, é distinguir bem as várias dimensões que compõem a complexidade da conversão evangélica para, articulando-as entre si, salientar sua integralidade. Trata-se sempre da conversão evangélica, no singular, e isso por possuir características próprias que confirmam sua singularidade. Mas, para que essa conversão evangélica possa se efetivar em sua força originária é preciso que se distingam suas constitutivas dimensões sem as quais ela não seria, para todos os efeitos, evangélica.
É importante, além do mais, salientar que essa conversão integral é fruto da nossa resposta aos apelos de uma autêntica espiritualidade integral. Uma vez que “tudo é relação e todos os seres são interligados” (Laudato Sì, nn. 92;115;120 passim), então, não há mais espaço para uma espiritualidade separada e, pior ainda, contraposta a tudo o que nos remeta à materialidade da vida. Espírito e matéria são distintos, radicalmente diferentes, mas nunca separados e menos ainda contrapostos. São reciprocamente implicados. No bojo desse novo paradigma ecológico assumido pelo papa na Laudato Sì reconhece-se que a espiritualidade é o avesso da materialidade, pois, em última análise, espírito e matéria se interpenetram. Na contundente expressão do grande poeta Fernando Pessoa: “Toda matéria é espírito”. Esclarecedoras, a esse respeito, as palavras do papa Francisco: “[…] a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático freqüentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as conseqüências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (Laudato Sì, n. 217).
O papa tem consciência de que a conversão integral necessita atingir as várias dimensões que compõem a índole constitutivamente relacional da vida humana. A complexidade dessas relações exige de nós sensibilidade e cuidado. Com efeito, nossas distintas relações se intercomunicam, pois, de fato, cada vez é a mesma pessoa que se experimenta em relação consigo própria e, ao mesmo tempo, em relações várias: intersubjetivas, comunitárias, sociais e cósmicas. A pessoa que se encontra enredada nas malhas dessas relações é quem unifica a partir de dentro essas distintas relações. No entanto, essas mesmas relações, apesar de vividas por uma pessoa em concreto, se distinguem entre si e, por isso mesmo, necessitam ser reconhecidas em sua própria singularidade.
Por essa razão, é fundamental reconhecer a relativa autonomia de uma relação para com as outras. E isso não fere minimamente a reciprocidade dessas mesmas relações. Autonomia e mutualidade constituem a complexidade das distintas relações vividas pelo ser humano em seu quotidiano. Daí a conclusão de que cada uma dessas dimensões relacionais necessita de atitudes e mentalidades que respeitem seu dinamismo próprio. Embora estejam intrinsecamente relacionados – o pessoal, o interpessoal, o comunitário, o social e o cósmico –, cada um deles possui ritmo próprio e regras relativamente autônomas. Não gozam de autonomia absoluta, obviamente, contudo, possuem uma relativa autonomia. As coisas não se misturam, sem mais. As mudanças não ocorrem sob o assim chamado “efeito dominó”. As transformações se dão de forma complexa uma vez que os desafios e as possibilidades são efetivamente complexos. Por essa razão, vale a pena atentar para a advertência que nos faz o papa Francisco: “Todavia, para se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias […] A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (Laudato Sì, n. 219).
Por fim, o papa Francisco nos adverte quanto às várias atitudes que compõem o mosaico da assim chamada conversão ecológica. A primeira delas seria a atitude de gratidão e ternura como expressão de nosso reconhecimento diante do dom inaudito da criação. Esse reconhecimento deveria se concretizar em gestos gratuitos de generosidade e de enternecimento para com as criaturas. Outra atitude seria a de não nos considerarmos separados das outras criaturas, mas de nos sentirmos parte, autênticos “filhos e filhas da terra” e, portanto, irmãos e irmãs de toda criatura. Há ainda outros elementos elencados pelo papa, provenientes de nossas convicções de fé, a saber: que cada criatura reflete traços do Criador e que, portanto, constitui uma mensagem única e singular; a consciência de que Cristo assumiu em si o mundo material e que agora, ressuscitado, continua habitando, mediante seu Espírito, a interioridade de cada criatura, fazendo delas e com elas seu corpo cósmico; que há um sentido inscrito pelo Criador no âmago de sua criação a ser discernido pelo ser humano.
Por tudo isso, fazemos voto que o veemente apelo lançado pelo papa Francisco possa encontrar acolhida entre nós ao longo deste percurso quaresmal: “Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis” (Laudato Sì, n. 221).
Frei Sinivaldo Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE