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Corpus Christi: adorar e partilhar

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Geraldo De Mori SJ

Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,15)

 

Um dos símbolos a partir dos quais se expressa a identidade católica, a eucaristia, voltará a ter visibilidade em 2022, por ocasião da festa de Corpus Christi, que nos últimos anos, por conta das restrições da pandemia, foi celebrada de forma bastante modesta. Por uma confluência de fatores, nos dias que antecederam à celebração dessa festa, notícias chocantes sobre a fome voltaram às manchetes dos principais meios de comunicação. Apesar dos avanços impressionantes na produtividade, que tornam possível alimentar os 7,7 bilhões de pessoas que vivem no planeta, a fome voltou de modo dramático no contexto pós-pandêmico, atingindo não só as populações dos países mais pobres do mundo, mas o próprio Brasil, um dos maiores produtores e exportadores de grãos e de proteína animal do globo. Um fator internacional, a guerra na Ucrânia, maior produtora mundial de trigo, levanta problemas sérios de segurança alimentar em muitos países. No Brasil, segundo dados dos 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, publicados em 8 de junho de 2022, o país voltou ao mapa da fome: 33,1 milhões de pessoas não têm o suficiente para se alimentar, mais de 14 milhões de novos brasileiros estão em situação de fome.

Muitas pessoas podem se perguntar: mas o que tem a ver a festa do Corpus Christi com a fome no mundo e no Brasil? Por que associar algo tão sublime, como o Corpo do Senhor, sua “presença real” no mundo, cuja ostensão deve convocar à adoração, com o problema da insegurança alimentar, que recorda não o sublime, mas a injustiça no mundo, que mais que à adoração, supõe o combate contra a desigualdade? Por que “misturar” religião e política, se a fé nos aponta o sentido último da existência e a luta pela sobrevivência nos reconduz ao que é da ordem do passageiro e da finitude?

A eucaristia, tal qual é entendida pela Igreja católica e outras igrejas cristãs, é muitas vezes associada somente ao mandato de Jesus na última ceia, de realização do gesto simbólico de partir o pão, após bênção e ação de graças, e distribuir o vinho, após bênção e ação de graças, como “memória” de seu corpo e sangue “dado” e “derramado” na cruz por eles, como sinal da “nova aliança”, “para a remissão dos pecados”. Esses gestos, atestados nos evangelhos sinópticos (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29 Lc 22,14020 e na 1Cor 11,23-27 são, surpreendentemente, omitidos no evangelho de João, que, em seu lugar, insere o relato do lava-pés (Jo 13,1-20). O mesmo evangelho associa de modo explícito a distribuição do pão às comidas de Jesus com seus discípulos, algumas delas conhecidas como “multiplicação dos pães” (Jo 6,1-15), também atestadas nos sinópticos (Mc 6,32-44; Mt 14,13-21; Lc 9,10-17). O fato de o Quarto Evangelho omitir os gestos que se tornaram referência na celebração da eucaristia, substituindo-os pelo lava-pés, pode ser uma advertência ao esquecimento que se operava entre o “ritual” da “fração do pão”, que remetia à última ceia, e seu significado mais profundo, o serviço, que podia levar ao dom da entrega da própria vida, como o fez Jesus, figurada no pão e no vinho.

Essa relação entre o pão partido e o corpo dado, o vinho distribuído e o sangue derramado, é constitutiva da compreensão da eucaristia. Portanto, não se trata de “politizar” o espiritual expresso no corpo e sangue presentes nas “espécies” do pão e do vinho, mas de mostrar que a eucaristia nasce das relações mais fundamentais da existência, que são as que giram ao redor dessas necessidades tão básicas da vida, que são comer e beber. De fato, para existir, o ser humano precisa alimentar-se. Para isso, ao longo dos séculos, foi criando, pelo trabalho, sistemas de produção, que lhe permitem ter acesso ao que necessita para sobreviver. Mas, além do “pão de cada dia”, ele experimenta que sua existência precisa de pausas restauradoras, que lhe mostrem que a vida não é só “labuta”, mas também lazer, gratuidade, festa. A isso se refere o vinho ou outras bebidas que “restauram” as forças e dão sabor e valor à vida humana.

A ostensão do “Corpus Christi”, que convida à adoração, não pode ser dissociada da memória do dom do corpo e do sangue de Cristo, ou seja, de sua entrega por amor ao Pai e aos discípulos até à morte de cruz, como sinal do advento da nova aliança e da redenção. Mas ela não pode tampouco ser separada do sentido que o pão e o vinho têm na vida humana. Ninguém sobrevive dignamente sem comida ou sem alimentação suficiente, como mostra o atual retorno da fome no mundo e no Brasil. Ninguém também experimenta que a vida vale a pena ser vivida sem momentos lúdicos e festivos, que recordam que ela é o dom fundamental, cuja origem é a gratuidade do próprio Deus.

O Pe. Pedro Arrupe, Superior Geral dos jesuítas do período que se seguiu ao Concílio Vaticano II até o início da década de 80, ao participar do Congresso Eucarístico na Filadélfia (USA), em 1976, no discurso que propôs afirma: “se em alguma parte do mundo há fome, então nossa celebração da Eucaristia fica, de algum modo, incompleta em todas as partes do mundo”. Na Eucaristia, diz ele, “recebemos a Cristo faminto no mundo. Ele não vem a nós sozinho, mas com os pobres, os oprimidos, os que morrem de fome na terra”. Esses homens e mulheres, continua ele, vêm a nós através Dele, “em busca de ajuda, de justiça, de amor expresso em obras. Por conseguinte, não podemos receber dignamente o Pão da Vida, se ao mesmo tempo não damos pão para que vivam aqueles que dele necessitam, sejam eles quem forem e estejam onde estiverem”. A ajuda a nosso irmão faminto, assinala ainda Arrupe, não “significa apenas repartir com ele simplesmente o que sobra. A Igreja nos ensina que o que não necessitamos, mas o temos, não nos pertence. Pertence à pessoa necessitada”. Por isso, “repartir o pão com o faminto significa que estamos dispostos a privar-nos de algo que necessitamos, para poder ajudar a outro que o necessita mais do que nós mesmos” (Pe. Pedro Arrupe, 1976).

Essas palavras, ditas há mais de 45 anos, numa época ainda marcada pela falta de produção suficiente de alimento para toda a humanidade, é muito mais urgente hoje, quando não só há alimento para todos, mas, por desperdício, por interesses estratégicos, por produções agropecuárias não sustentáveis, de novo a fome volta a rondar o mundo. Os que se alimentam do “corpo e do sangue do Senhor”, mais do que ninguém, devem ser os primeiros a viver o gesto da solidariedade, expresso no “partir o pão” e no “distribuir” o vinho, de cuja celebração participam. Mas, essa solidariedade não pode se contentar em ser apenas um gesto pessoal. Ela precisa irradiar, e para isso, ela deve tornar-se também um gesto de alcance maior, que se expressa em apoio a movimentos que lutam por “terra, trabalho e pão”, e que estejam atentos para as forças políticas que colaborem na construção de sistemas mais justos e equitativos, comprometidos com um real combate às causas mais profundas da fome, que é o sistema que produz fome.

 

Geraldo de Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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