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Cristão em tempos sombrios: resistência ou submissão?

Élio Gasda SJ

Quando papa Francisco questiona a inviolabilidade do direto à propriedade privada, como o fez na homilia de Domingo da Divina Misericórdia, ao lembrar que entre os primeiros cristãos “ninguém considerava sua propriedade o que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum” é chamado de marxista. Mas não se abala e reafirma: “não é comunismo, é cristianismo em estado puro”.

Francisco apenas assume a Doutrina Social da Igreja: “O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ‘primeiro princípio de toda ordem ético-social” (Laborem exercens, 19). E continua: “O direito de propriedade nunca deve ser exercido em detrimento do bem comum […]. Onde existe conflito entre direitos privados adquiridos e necessidades primordiais da comunidade, cabe ao poder público trabalhar na sua resolução, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais”.

Levantamento do jornal Estado de Minas com base na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) Covid-19, do IBGE, publicado nesta semana comprova que não é bem assim. Em Belo Horizonte, por exemplo a Covid-19 tem profissão: o setor de limpeza! 62% dos internados por um dia, em 2020, eram faxineiros, garis e auxiliares. Empregados domésticos, diaristas e cozinheiros representaram 6,5% dos internados. Em relação ao número de sedados, intubados ou em respiração artificial as categorias representam 49% e 25% respectivamente. Esses profissionais de alto risco, mal pagos, que utilizam o transporte coletivo lotado, trabalham para proteger a vida dos outros, mas não têm prioridade à vacinação.

A pandemia tem perfil social. A esmagadora maioria dos infectados e das mortes é de gente pobre, trabalhadora, anônima. Para piorar, o governo federal deixou de gastar R$ 80,7 bilhões dos 604 destinados para o enfretamento da pandemia. R$ 28,9 bilhões deixaram de ser gastos com o auxílio emergencial (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

A saúde não é mercadoria. O artigo 196 da Constituição Federal declara: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a vacina contra Covid-19 como bem público.

“Ter uma vacina não é suficiente, precisa haver solidariedade global” (António Gutierrez). A vacinação é cada vez mais desigual. A meta estabelecida pela OMS em parceria com a Aliança Global de Vacinas (Gavi) de iniciar a imunização de 220 países nos primeiros 100 dias do ano fracassou. Enquanto 87% dos imunizados são de países mais ricos, apenas 0,2% da população dos países mais pobres foi vacinada.

Os direitos de patente foram criados para estimular a concorrência em tempos normais. Os tempos atuais, porém, são excepcionais, são tempos de pandemia global. A Rede Latino-americana e do Caribe de Bioética da Unesco (Redbioética) engrossa o coro pela suspensão das patentes das vacinas a fim de garantir que as populações mais vulneráveis sejam vacinadas e, assim, evitar novas mutações.

‘Camarote vip’ da vacina

Rasgando a Constituição, num gesto de total imoralidade, a Câmara dos deputados aprovou o Projeto de Lei 948 que permite a compra de vacinas contra Covid-19 pelo setor privado antes da vacinação de grupos prioritários do Plano Nacional de Imunizações. Jovens ricos serão vacinados antes de idosos e grupos de risco.

O projeto tem apoio dos empresários, coloca em risco a saúde das populações pobres e as instituições pública, já que não há necessidade do aval da Anvisa. Entre tais empresários estão 65 cujas fortunas individuais ultrapassam a casa do bilhão de dólares. Somado o montante desse grupo corresponde a cerca de US$ 212 bilhões (R$ 1,2 tri). Os bilionários brasileiros da área da saúde são os que mais ganham dinheiro na pandemia. O valor médio saiu de US$ 1,64 bilhão em 2020 para US$ 3,85 em 2021, crescimento de 134,76% (https://www.forbes.com.br). Milionários da morte.

A taxação das grandes fortunas está na Constituição Federal. Se fosse colocada em prática atingiria apenas 5% da população e renderia mais de R$ 100 bilhões por ano. Valor suficiente para financiar o Sistema Único de Saúde do país.

Enquanto milhões de pessoas engrossam os números da fome, os ricos estão ficando mais ricos e os pobres mais pobres, sem trabalho, sem vacina e morrendo. Cada dia é um dia perdido para a vida.

E os cristãos, como estão? Entre conivência e denúncia? Resistência e submissão?

Um grande defensor do cristianismo em tempos sombrios, como papa Francisco, foi Dietrich Bonhoeffer. Por denunciar os crimes de Hitler, foi enforcado no dia 9 de abril de 1945. Teólogo e pastor luterano, combateu o controle da Igreja Luterana por Hitler e os cristãos pró-nazistas: “O cristianismo se conformou muito facilmente com a adoração do poder. Deveria gerar mais ofensa, mais choque para o mundo. O cristianismo deveria se posicionar mais a favor das pessoas vulneráveis do que considerar a hipotética moralidade dos fortes” (Bonhoeffer).

Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faje.

FONTE: https://domtotal.com/noticia/1510555/2021/04/cristao-em-tempos-sombrios-resistencia-ou-submissao/

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